quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Permanent Vacation

Os Sonhadores?


Paris, 2010

Uma aprendizagem

Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceitado o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregues a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

- Clarice.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ride, Sally, Ride*

Se Sally tivesse um twitter, ela me disse, postaria a cada 25 minutos que está ficando louca.
Isso daria 96 posts por dia, ela não dorme mesmo.
Talvez um dia ela convencesse alguém, e fosse finalmente internada.
Uma cela acolchoada e uma cama, banho de sol de duas horas para ler Virginia Wolf à sombra, além de três refeições ao dia, é tudo que Sally precisa.
E sonhar, sonhar com longas cavalgadas.


Ride, Sally, ride.






* Título plagiado de uma canção de Lou Reed.


You won't let me down, again



Mark Lanegan (ex-cabeludo do Screaming Trees) e Isobel Campbell (ex-gracinha do Belle and Sebastian), juntos. Do "Lastfm":

Isobel Campbell, é escocesa, pertenceu antes aos Belle & Sebastian. Lanegan é norte-americano, um ex-membro dos Screaming Trees e Queens of the Stone Age e juntos fazem uma parceria pouco provável no mundo musical. É como se um cordeiro resolvesse se unir ao lobo, algo impensável . Mas o fato é que o casamento musical é perfeito, num tom alegre e psicodélico, folk ou country, construíram algo semelhante ao céu, ele com uma voz rouca e máscula, ela com uma voz suave e angelical. Como Campbell chegou a dizer numa entrevista, as duas faces de uma moeda. O primeiro single Ramblin’ Man é um cover de Hank Williams e Isobel chegou também a afirmar que poderia ser muito bem uma faixa de uma trilha-sonora de um filme do Quentin Tarantino, mas é a perfeita visão do mundo dos filmes e o espelho da perfeição das duas vozes. Pelo caminho ouviram desde Johnny Cash a Nancy Sinatra, mas do álbum é difícil selecionar ou nomear canções, é de uma qualidade homogênea e de uma diversidade de sonoridades e paisagens a que nos transportam, faz viajar.


Quem quiser ouvir mais, aqui tem "keep me in my, sweet heart" (que já vale pela apatia do Mark frente a apresentadora):


http://www.youtube.com/watch?v=8paR1SjbwNs

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Adormecendo sob sedutoras asas

Distância
Mais vontades, Noves fora, zero.
E ela ainda diz que pode ser.
Uma musica triste é como
Um cobertor para aquecer um corpo que já arde
Conhaque pra esquecer, e que me faz
Bater como um louco nessas teclas feitas de [mármore,
Inscrevendo aqui um sério epitáfio:
Esse acordo com o Diabo não fui eu quem quis, foi [esse calor que em certas madrugadas insiste em [voltar com uma tal violência que me paralisa;
Carneiro imolado oferecido aos lobos da mente, me [vejo
Aos sete anos de idade, de castigo no porão por [conta própria por ter me comportado mal.
O Anjo de Luz apareceu pra mim e me propôs
Não uma saída, mas um conforto.
Abriu suas longas asas sobre mim e pediu que eu [renegasse
As tardes outonais sob as mangueiras, ao amor materno,
Os amores inocentes no despertar da juventude, os [sonhos tranqüilos.
Recusei, cordeiro de Deus.
Ele voltaria mais tarde, no meio da noite, no meio [da chuva, mais uma vez expulso.
Não lhe negaria pela terceira vez, eu, Pedro ao [avesso.
Troquei minhas parcas ilusões por um inferno de [sensações.
Estou sempre próximo de um êxtase que nunca [alcanço,
Que me abandona quando estou quase no auge,
Pra me deixar enclausurado em minha própria [santidade
Sóbrio, exausto e sem amor nenhum, e este ciclo [vai se repetindo.
E a impossibilidade de vivenciar este encontro é [só uma prova
De que Ele ainda está aqui, com suas belas asas,
Sedutoras asas de anjo,
Para se certificar de que estou cumprindo minha [parte do contrato.
Como se eu tivesse outra escolha.
Como se fosse possível, para um dissidente,
Reatar antigos laços, lealdades, esperanças.

domingo, 17 de outubro de 2010

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Slow Motion (ou Sobre levar a luta até o décimo-segundo round)

Não existe motivo algum para agitação na hora de servir o café. A menos que você tenha absoluta certeza de que um meteoro se chocará contra sua casa nos próximos minutos, repito, não há motivo para pressa. Se não por você, o faça por mim. Gosto de observar seus vestido enquanto você se move com graça, o tecido preto roça suas pernas como eu gostaria de fazer agora com meus dedos; quando se aproxima do fogão para ver se está pronto, pisa com o pé direito sutilmente sobre o esquerdo e parece nervosa. Vejo tudo isso em câmera lenta e não quero que seja diferente, não te quero ver afobada, não, nunca mais, deixa essa novíssima calma que agora conheces escapar por seus gestos. Deixe a bebida cair lentamente da cafeteira para a xícara (não tenha pressa) enquanto eu te digo: Estou farto deste cansaço. Farto deste beco sem saída que a cada dia se estende um pouco mais sem me levar a lugar algum. Farto dessa ânsia, dessa sede não saciada, destes minutos preciosos sacrificados no altar da covardia e do silêncio. Quero abraçar algo mais quente e delicado. Ainda que longe. Em algum momento. Mas a paciência deve estar do meu lado dessa vez. Não tenho pressa. Assim que te peço para que também não imprima velocidade alguma a este momento. Quando crianças, éramos pródigos em imaginar vidas menos cinzas e nelas o tempo não passava, nunca era hora de dormir. E agora que queremos dormir o sono não parece chegar nunca, será mesmo que nos intoxicamos tanto assim? As toxinas do desejo. Os espinhos da realidade e dos crimes ainda por cometer e que desde já não merecem perdão. Não fomos feitos pra isso. Pra essa comédia de erros e misericórdia. Entre uma tarefa e outra, tomamos um café e respiramos ares menos conturbados, então, pra que apressar isso? Pra deixar que morra logo? Vamos nos estirar no sofá deste sábado-que-não-acaba-nunca. Vamos morrer para a humanidade. Um pequeno presente pra nós mesmos. Uma moeda pelos seus pensamentos, duas por um de seus segredos,    mil moedas pela profecia que há de se cumprir para nosso deleite. Madame Bovary dos tempos que correm, espere um pouco mais porque o tempo de se lamentar ainda não chegou. Vista-se com seus melhores panos, sorva esta bebida quente e forte, me conte que não vai mais fse sentir tão sozinha. Eu também cansei de me cortar com navalhas cegas. Carrego o peso dos dias só por instantes como esse, fiz dos filmes westerns que vi um aprendizado. Não desperdiço mais munição atirando a esmo. O tempo me levou a considerar melhor a minha própria ansiedade, do mesmo jeito que Muhammad Ali golpeava a verdade. Olhos nos olhos, deixo que despertem minha vontade. E ataco, certeiro, mas sem pressa.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Cowboy Junkies



"Blue Moon Revisited (Song for Elvis)"

Nessa música, a banda mistura uma composição própria com a famosa "Blue Moon", que dá pra encontrar na voz de Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Elvis, Sinatra e por aí vai.
E aqui a letra apenas de Blue Moon.

Lua azul
Você me viu parada sozinha*
Sem um sonho no meu coração
Sem um amor que seja meu
Lua Azul
Você sabe pra que eu estava lá
Você me ouviu fazendo uma oração por
Alguém com quem precise me preocupar


E então subitamente lá apareceu diante de mim
O único que meus braços irão segurar
Eu escuto alguém sussurrar por favor, me adore
E quando olhei para a lua ela se tornou dourada


Lua azul
Agora eu não estou mais sozinha
Sem um sonho no coração
Sem um amor que seja meu


Lua Azul...


* Coloquei o sujeito no feminino porque só consigo imaginar Billie cantando essa musica. Se bem que o Elvis também é foda. Enfim.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Hope Kills

A esperança mata, mas antes ela te esfola, arregaça, arranca tua dignidade e te faz rastejar na lama mais pútrida.  Ela te usa, te derrota e, se por esforço próprio você consegue superar tudo isso, dizem que tu venceu porque teve esperança. É assim que ela mantém sua aura de santidade. Mentindo. Você não descansará até que tudo esteja realmente perdido, quando era muito mais fácil ter dado as costas e pulado fora antes da queda final. Não é nenhum crime fugir. Mas você preserva a esperança, e fica. Nunca os seres humanos se mostram tão fortes quando têm esperança. E se fodem por isso. E ainda assim acreditamos. Melhor seria acreditar na escuridão de nossos olhos, na embriaguez de nossos corpos, na solidão de certas noites, em nossos beijos escandalosos, nas visões, ora magníficas, ora aterrorizantes, que temos. Mas é mais interessante (não necessariamente fácil) ter esperança. Interessante para nossa natureza masoquista e fluida. E assim nos jogamos. E assim criamos fabulosos poemas cuja substância é nossas próprias vidas, que poderiam até ser um belo romance se não fossem verdadeiras e se as autoras principais não se chamassem dor (sem sua irmã, redenção) e soledad. E esse vinho que desfrutamos enquanto nos enchemos de esperança é ao mesmo tempo tão amargo e tão doce...  E no fim, você pode até... digamos, vencer, mas isso não apaga as marcas e lembranças. Viver com esperança é ter uma arma apontada pra cabeça por um esquizofrênico. Ter esperança é ser punido por ser a vítima de um crime hediondo. Cortejar a esperança é suspirar no vazio. Viver de esperança é ter sede no deserto. E ainda assim é através dela que atravessamos os dias difíceis. Urge não aceitar a derrota. Em vão tentamos. E erramos. E vivemos. E esperamos.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Discurso para um outubro sem demônios

Foi assim:
Primeiro eu achava que não precisava me preocupar com essa vida porque a que viria depois seria infinitamente melhor.
O importante era me manter respirando e não vacilar muito com os outros, tava tudo certo. Amar o próximo como a ti mesmo. Aham, sei.
Daí que a guria me deu um toco na igreja.
(Ok. Visando não perder a verossimilhança, devo confessar que nem houve toco. Nem tentei, mas ver a guria pra quem lançava olhares que eu acreditava serem de desejo desfilar com o cara mais tosco de todos arrebentou minhas esperanças. Demorei a descobrir que amor tinha muito mais a ver com sexo do que com gentilezas, e sim, ele tinha pinta de quem sabia foder alguém).
Depois, eu acreditei que era possível comprar ou forjar uma vida pra si. “Temos todas as opções, pode escolher, o cliente é quem manda.”
“Temos o rebelde sem causa que mora com os pais e sempre bebe até vomitar; o nerd que vive pelos cantos, não come ninguém e se julga incompreendido; o cara inteligente e boa praça que namora a mais bonita da turma; o machão encrenqueiro que come todas, conta pros amigos e chora à noite porque sabe que é sozinho... A lista não acaba”.
Não topei nenhuma dessas, ainda que tenha tentado algumas.
Nessa época coisas estranhas aconteceram. E nem falo da voz que muda e dos hormônios que surtam. Andei pra lá e pra cá, descobri o poder que se pode ter sobre alguém, o valor da negação pura das afirmações vazias (“sim, claro, você tem razão”), Velvet Underground, Sade, Coca, Baudelaire, Drummond, maconha, O curto verão da anarquia... Vivi minha década de 60 particular, anos incríveis, ateu graças a deus.
E então o vazio. “Viver por algo maior”, dizia pra mim mesmo. Adolescentes são mesmo seres dignos de pena.
Aí que resolvi colonizar minha vida com a política do cotidiano. Socialismo, anarquismo, existencialismo, desconstrutivismo, feminismo... Viver era transformar. E não bastava comer merda, ainda tinha que convencer os outros de que a merda era boa. Missão impossível pra quem prefere enfiar o dedo na tomada a subir em qualquer espécie de palanque.
Tudo ótimo. O idealismo realmente disfarça bem a mediocridade. Farras, orgias, super estimativa da própria importância, loucura. Por sorte, e eu sempre contei com a sorte, fiz amigos. E me apaixonei. De verdade. Nada a ver com a história da igreja.
E aí foi pisar fundo no acelerador. Rumo a um viaduto inacabado. E não tirar o pé ao ver a altura da qual despencaria. E isso justamente quando achei que estava dando um jeito na minha vida. Uma pessoa adulta, saca? Foi foda. Adrenalina e medo são viciantes. Viver no limite, andar no fio da navalha, o amor é um cão dos diabos, não é Velho Safado? Conheci tudo isso. Não me prostrava de joelhos desde a época da igreja. E cansei de rastejar. Caminhar pelo lado mais louco. E viver era isso. Desejar, sofrer, frustrar-se. Sentir. Sentir. E parar de sentir. Sem aviso prévio. O império dos sentidos cobra seu preço. A paixão vicia mais que a cocaína, e o veneno demora muito mais pra sair de seu corpo. Dizem que depois de algumas semanas, é como se você nunca tivesse cheirado. Amar não. Arrumar um grande amor pra substituir outro não encerra o vício, só muda a procedência e a qualidade da droga. Eis o truque do jogo. E descobrem-se outros vícios. Viver torna-se um vício. Minha mais nova ideologia, o vício, a certeza de dar para o mal. O resto é resíduo. Distrações enquanto a madrugada não chega ou pra ela passar mais rápido.
E o acaso. Minha religião. Não consegui nada que não fosse por ele, então nem ouse atacá-lo. Somos governados por um tirano endiabrado, que brinca com nossos pequenos dramas. Não há sentido. Uma grande piada. Elvis morreu sentado na privada, então não me venha chamá-lo de rei.
Beijarei teus lábios e vou te morder entre as pernas, não espere muito de mim além disso. Não posso oferecer muito além de minha confusão, minha história sem nexo, minha sina maldita, minha ausência de fé, minha vida imaginária tão real, meus caminhos, minhas veredas, veredas sinuosas, veredas blues. O resto é sombra. Mais rápido amigo, o mundo está atrás de você. É hora de testar a vida, descobrir enfim se ela é sólida, líquida ou etérea.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Notícias do front - Saulo Ribeiro



Leio coisas do Saulo desde os tempos do Duda Bandit (que, por falar nisso, deixa saudades). Felizmente, o blog morreu, mas não o ímpeto criativo. Já sabia disso. O trabalho como dramaturgo seguia, e textos eram atirados ao mar virtual vez ou outra, com muito menos frequência que antigamente, é verdade. Mas dava pra ver que a criatividade não havia cessado, afinal de contas, a "ferrugem nunca adormece", como diria Neil Young. E agora parece que ele resolveu soltar um livro de contos. Chama-se "Diana no Natal" (título intrigante), pela editora Cousa. Não sei exatamente o que se passa naquela terra, nem sei se pode ser atribuído à terra, mas vejo bons ventos soprando lá com relação à área literária. Diferente do Rio de Janeiro, esse balneário sombrio onde vim passar uns tempos (quanto tempo, nem perguntem!), ainda se faz poesia lá. Me entendam. Por aqui, uma tal poesia-performance domina o cenário. Todos poetas são atores/performers de seus escritos. Sinais dos tempos, talvez. Mas escritores que  se relacionam de modo íntimo com a palavra e confiam no vigor dela por si só, como "antigamente" (nem tão antigamente assim), esses estão em franca extinção. Então, talvez seja um bom sopro de anacronismo que algumas pessoas preservem este senso estético diferenciado, e dominem sua arte. Porque sim, e esse é o ponto, é muito bom.  E tento não acreditar que aconteceu de simplesmente conhecer os bons escritores da minha terra (é possível achar alguns deles nos links deste blog, ainda que nem todos/todas ainda escrevam, ou pensem em transformar o que escrevem em algum tipo de livro), creio sinceramente ser algo maior. Um sopro, ou melhor ainda, bons ventos. Espero coisas boas desse livro, gostaria de estar presente no lançamento. Quem puder, vá e me conte. E se quiserem comprar um pra mim, melhor. Prometo escrever algo aqui quando lê-lo. Porque cheira a coisa boa.

E abaixo o vídeo que tava rolando por aí:



Um brinde, com conhaque desse vez.

Em "homenagem ao dia de ontem"



Mark Lanegan, "Ugly Sunday".

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Encontrando Mário Bortolotto

21 - 09 - 10

Eu estava lá, na fila pra comprar o livro do cara, e a letra de "Nossa vida não vale um Chevrolet" não saía da minha cabeça. "Eu sangro, eu te ligo no meio da noite, pra dizer que o Mal, o Mal mora em mim". Nem vou entrar nesse papo de identificação e da sintonia com alguém que não conheço. Mas esse assunto do fantasma que habita em cada um, o "inimigo interno", sempre me perturbou. E é inevitável que, acompanhando os textos do cara, eu arrisque dizer que sei do mal que ele está falando. Mais inevitável ainda que eu compare com meus próprios demônios, comece a especular. Sei lá. Não acredito nisso, mas devemos ter nascido sob a mesma lua, sob o mesmo "signo ruim" daquela música que Hendrix regravou. Destinados a manter distância da humanidade, a mesma que desejamos conhecer, observar, e (por que não?), amar. É que eu não sei usar o amor, como diria Clarice? Pode ser. Mas não vai adiantar nem todo amor do mundo pra retirar esse tumor maléfico, essa certeza de ter nascido do outro lado do rio, esse prazer em caminhar em silêncio na escuridão. Só pra não ser notado. Para que, imensos e escuros, somente meus olhos resplandeçam, nada mais. A violência dessa certeza. Há dias em que acordo com a vontade de encontrar com alguém, qualquer pessoa, e iniciar aquele tipo de desabafo sobre mim que termina quase que inevitavelmente por espantar definitivamente meu interlocutor. Mas não quero afastar aqueles que amo. Há realmente coisas assustadoras aqui dentro e já me sinto vitorioso de não deixar isso vir à tona sempre. No máximo, os mais observadores vão notar pequenos sinais enquanto tomo meu gole de cerveja e fico distante da conversa que se desenrola, viajando por sabe-se lá quais outras veredas. Talvez daí esse cancro que só aumente e que vai acabar me matando. É que é muito difícil explicar para as pessoas que, por mais que todo carinho não adiante para afastar a sensação de que nasci errado, o esforço delas não é em vão. Mas é assim, vai sempre parecer ingratidão, egoísmo, cegueira. E quem sabe se no fundo não é mesmo? Espero que não. Mas até que fique provado, é só instinto de sobrevivência. Mas algumas coisas aliviam essa sensação. Cúmplices, amantes, soulmates. E esse mundinho indecente do cinema, poesia, música, muita música. E a banda do Bortolotto, "Saco de Ratos", é o tipo de som que deve rolar no inferno se ele for um tipo de bar; e ficar ali, curtindo aquele som, enchendo minha cabeça de pensamentos perversos, felizes e melancólicos ao mesmo tempo, fez a diferença. E agora vou passear meus dedos pelas páginas de seu livro, "Um bom lugar pra morrer". Título adequado, epitáfio pronto. Não saí de lá conhecendo nem mais nem menos o Mário, mas fiz um acordo comigo mesmo, que não posso inscrever aqui. Mas não tem problema, algumas coisas não foram feitas pra ser acendidas, algumas velas foram feitas para não serem acendidas em orações. E eu ainda não entendi o que ele escreveu pra mim no livro que ganhei naquela noite, mas bem que poderia ser um mapa pro inferno mais próximo.

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...