terça-feira, 24 de junho de 2014

Pássaros que Voam Solitários sobre o Campo de Lírios



O café e os cigarros estão lá, quando ninguém mais está. Boas companhias, mas que cobram o alto preço do vício e da culpa sem chance de redenção. Quem me dera a prescrição médica necessária para comprimidos que anestesiem o coração. Mas mesmo minha entrada no mercado negro de afetividades ilícitas, onde poderia encontrar tais drogas, está condicionada a teu perdão. Então postulo teorias malignas neste inferno particular, mas isso é apenas uma forma de me livrar delas, para que reste em meu coração apenas a ternura de dias deixados para trás, de cafés que não tiravam o sono e cigarros que não deixavam um gosto tão ruim na boca. Dias em que até rimos desses vícios sem sentido, dessas estradas sem rumos e das noites sem fim. Dias de ritmo (que é o que dita a beleza). Mas também dias dos espelhos sem reflexos. E da vontade cruel de deixar tudo pra trás, não sem antes deixar no ar o curto rastro de nosso voo, como uma linha de fumaça negra descrevendo uma parábola dentro da qual os mais espertos dentre os nossos lerão aquela tal palavra. 

Colhamos logo estes lírios.

domingo, 22 de junho de 2014

Me and the Devil Blues Revisited


Eu e o diabo sentamos
para dividir uma garrafa de whisky
e falar de nossos problemas.
Problemas de homens, de garotos,
problemas de quem anda com o coração
fervendo num peito que não se fecha de tão cheio.

Então o diabo me disse:
"filho, encontre uma mulher pela qual valha a pena morrer
- e então morra,
porque você não vai querer viver
quando ela te deixar.
E eu sabia que ele estava falando de você
quando disse que estava apaixonado por uma garota.
Pois eu te disse uma vez que era você
a mulher com o inferno e o paraíso nos olhos
a única com uma voz capaz de enganar Lúcifer,
não disse? agora ele está aqui
e caminhamos lado a lado.

Baby, quando eu descobri que estava certo sobre ti
eu quase consegui rir.
Eu e o diabo,
tomando whisky,
escutando Willie Nelson:
"you look like the devil".

R.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

À Uma Hora da Manhã



"Descontente de todos os meus descontentamentos e de mim mesmo, gostaria de me recuperar e me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite. Almas daqueles que amei, almas daqueles que exaltei, fortificai-me, sustentai-me, afastai de mim a mentira e os vapores corruptores do mundo; e Vós, Senhor meu Deus! acordai em mim a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que eu não sou o último dos homens, que eu não sou inferior àqueles a quem desprezo".

- Charles Baudelaire


terça-feira, 10 de junho de 2014

O dia em que as horas param



Desjejum

Mal tinha forças para segurar com a firmeza necessária a faca com que cortaria o pão. Precisei rasgá-lo com os dedos, o que se mostrou não apenas uma tarefa incomparavelmente mais fácil como também, de alguma maneira, mais prazerosa. A forma como inseri os polegares na massa fofa, para então cortar-lhe e retirar o miolo, transformando-a numa casca vazia que logo levei a boca para consumir, pedaço por pedaço, como se fosse carne, como se abrisse o estômago de uma pessoa ainda viva para devorar suas vísceras, tudo isso me sugeria um ritual dotado de violência, que eu me perguntava de onde teria vindo numa manhã fria e silenciosa como aquela. Derramei algum café na caneca e me dirigi à janela. Queria contemplar a mata enevoada até ser capaz de desvendar aquele impulso violento que por um segundo havia sentido crescer em mim. Meus olhos fixaram a névoa, a paisagem tornou-se um mero borrão, minha visão penetrou a fina camada branca e era como se eu entrasse no sonho de alguém. No meu sonho. No sonho que tive a poucas horas. O último antes de despertar. Numa casa vazia, esta mesma casa em que vivo, as janelas abertas deixavam a névoa entrar, junto de um frio que parecia quebrar meus ossos como vidro. O telefone, que não estava ali até então, tocou. Eu atendi com pressa. Do outro lado da linha, uma voz. E eu sabia que era ela. Por Deus, de alguma maneira eu sabia que era ela. Foram três palavras, mas quais? O café esfriou, minha casa esfriou, meu corpo congelou, e era como se eu acabasse de despertar suando frio de terrores noturnos. Não consigo lembrar o que ela disse. Sentei na cadeira e comecei a chorar. Desesperado, inconsolável. Eu não sei o que ela disse, mas fora algo terrível. Sonhos não fazem promessas, mas mandam seus recados.


Almoço

Eu prepararia um risoto para a moça que me visitaria ao horário de almoço. Depois da quase revelação que tive durante a manhã, depois do acesso de ódio e medo inexplicáveis frente à identificação da voz que me assombra até mesmo em sonho, uma ferida havia sido aberta em meu dia, eu precisava urgentemente estancar aquela hemorragia antes que ela se tornasse irreversível. E não seria um simples curativo que faria o serviço sujo, eu precisava cauterizar aquele corte de maneira que nada sobrasse dele além de uma queimadura vulgar e que nada dissesse sobre a origem daquele mal – uma ferida aberta pelas garras de um animal selvagem. Então ela viria, provavelmente entraria por aquela porta com uma garrafa de vinho nas mãos e seus beijos incendiários nos lábios. Então, vem, dama invernal, eu dizia enquanto cozinhava. Vem e me deixe beber esse vinho entre seus seios. Deixe-me sentir o cheiro em sua nuca por baixo dos seus cabelos. Eu preciso de seu fogo, de sua raiva santa quando me cavalga, das janelas para o infinito que se abrem em seus olhos quando goza. Faça-me esquecer da poeira dos dias, da voz em meu sonho, escandalize os vizinhos, me deixe marcas, prove minha seiva. Não traga seus pudores ou seu bom mocismo, deixe que blasfêmias saltem de sua boca, que só você pode me tirar do escuro. Venha com sua fome e suas melhores más intenções sem exigir muito de mim, que eu apenas posso lhe entregar vontade, minha dor insana, o fogo do inferno e um risoto ao funghi que, honestamente, não tem graça nenhuma.


Interlúdio

Depois que C. foi embora, fui tomado pela mesma sensação de sempre quando ela me deixa: Um estranhamento causado por não saber exatamente o que eu significava pra ela, nem como ela conseguia ser tão indiferente em relação a minha vida e a tudo que se passava a nossa volta. Ela seguia o caminho rumo a seu marido, trabalho e batalhas judiciais e eu ficava com minha confusão. Ela durava pouco e, como eu esperava, era invadido a seguir por uma reconfortante paz e esquecimento dos eventos matinais (e o que seriam dos conceitos de paz e felicidade não fossem os dons de esquecer e se distrair?). De posse dessa tranquilidade, eu me concentrei em meu trabalho, enfim. Tranquilidade que era interrompida momentaneamente e em intervalos regulares quando, sentado à mesa em frente ao computador, sentia algo como um sopro atrás de uma de minhas orelhas ou até percorrendo meu pescoço. Depois de acontecer pela quarta vez, eu nem tinha mais o impulso de me virar para trás na esperança de ver algo, meus pelos apenas arrepiavam, eu dava um suspiro profundo e seguia trabalhando. Até que no meio da tarde, eu senti mais uma vez esse sopro, mas não apenas isso. Senti como se duas mãos primeiro repousassem sobre meus ombros, a seguir apertando-os e lentamente cravando as unhas em mim, puxando-me para trás enquanto eu fazia força para permanecer como estava. Eu sabia o que estava acontecendo. Eu estava alucinando, há tempos isso não acontecia, mas havia voltado, só podia. Recostei-me na cadeira, respirava fundo e cadenciadamente, como o médico havia me ensinado. Fechei os olhos. Contei até dez. Neste intervalo, imagens aleatórias passaram por minha cabeça: Um acidente de carro que não presenciei; meu pai deitado em seu caixão; Um grupo de esfarrapados contra uma parede, fuzilado por policias que riam como hienas; Uma tempestade violenta que me impede de sair de casa; Um padre me observando com um olhar demoníaco; um feto ensanguentado sobre um lençol branco; uma mulher se afogando e sua face tranquila enquanto ela afunda; o mar, silencioso e inabalável e por isso mesmo imponente. Minha respiração falhou ante estas imagens. Abri os olhos e surpreendentemente não apenas minha sala, mas toda a casa está imersa em escuridão. Não eram sequer quatro da tarde. Corri para a janela e tudo lá fora era escuridão e silêncio como eu ainda não havia presenciado. A mata exibia então sua face mais ameaçadora, uma que eu não podia ver. Eu precisava saber que horas eram. Quanto tempo permaneci com os olhos fechados? A tela do computador estava apagada, apenas o mesmo tom escuro lá de fora. Suas luzes em LED, no entanto, permaneciam acesas. Corri para o banheiro, a esta altura com a boca seca e o coração disparado, tomei água da torneira e depois lavei meu rosto com ela. Eu precisava voltar a mim. Minhas pupilas estavam dilatadas. De repente, um grito estridente de uma mulher cortou o silêncio como uma faca aquecida cortando uma língua humana. Era só uma voz, mas eram os gritos mais altos que já ouvira. Quando consegui escapar da paralisia inicial, antes que pudesse pensar em correr, um estrondo pesado contra a parede me paralisou novamente, junto ao som de vidro partido enquanto os gritos cessaram. A esta altura meu estômago se contorcia de fome e de pavor. Sim, fome. Não havia almoçado – não houve espaço para isso naquela orgia de tesão, esquecimento e indiferença – ou comido qualquer outra coisa além daqueles pedaços de pão pela manhã. Eu me sentia fraco e tonto. Corri até a sala, vi meu computador destruído ao chão, em meio ao vidro da mesa espatifado. Caí de joelhos, cacos de vidro penetraram minha pele e a última coisa que vi antes de desmaiar foi o vulto de uma mulher ao lado da porta de entrada.


Jantar


Quando acordei, vestia roupas que não eram minhas. Eu havia dormido ou só cochilado, um leve desmaio? Porque a vida, quando dormimos demasiado, passa, e a despeito de nossa vontade, nos enfia em roupas que não nos cabe mais, faz com que nos sintamos desconfortáveis até mesmo no lugar que outrora chamamos lar, trocando os móveis de lugar, enfeitando as paredes com desenhos estranhos e runas antigas, e aí sabemos que não somos mais os mesmos, que aquelas novas roupas estão ali para ficar e somos nós que precisamos nos ajustar a elas, pois não há nesse mundo todo um só alfaiate hábil o suficiente para costurar os sonhos que pouco a pouco deixamos para trás. E havia sangue nestas roupas. Pelo chão, havia estilhaços de muito mais coisas que um computador e minha mesa. Pedaços do teto, livros rasgados e restos de comida se misturavam com o pó acumulado e fotos que se espalhavam pela cerâmica fria. As fotos eram de momentos diferentes da minha vida, de tantas pessoas que passaram por ela... quando peguei elas em minhas mãos, notei que nas fotografias o rosto de todas as pessoas estavam riscados. Meu estado era de completa confusão mental. Quem havia feito aquilo? Quem esteve ali e me deixou daquela forma? Quem era ela, que eu vi a segundos de perder a consciência? Súbito, a minha mente, uma recordação. Uma voz. A voz que me despertou, era dela. Enquanto eu jazia entre vidros e poeira, sua voz sussurrou em meu ouvido três palavras que me despertaram. Era a mesma voz do telefonema. “Sua hora chegou”, ela dizia. As palavras que me haviam aterrorizado pela manhã, não surtiram efeito algum desta vez. Eu me sentia em paz. Era a convicção de que não havia mais nada a ser feito, que todas as criaturas sob o sol encontram o mesmo fim e não é dada a elas o momento de escolher este momento. É possível alguém estar feliz sabendo que este momento está tão próximo? Eu não sei. Minha janta, que eu não lembro de ter comido, espalhada pelo chão, irreconhecível vômito de toda uma vida, angústia misturada a pedaços de verduras e legumes. Ergui-me cambaleante. Dirigi-me ao quarto e deitei com placidez. Fechei os olhos e tratei de imaginar como se pareceria esta força irrefreável que nos traz aqui para nos arrancar a qualquer hora. Dormi com o sentimento de que o verdadeiro amor é capaz de encontrá-lo no fim. Tudo que eu deveria fazer era esperar.


Rodrigo R. Vitorino 10 - 06 - 2014

No more cigarettes




Foto: Elena Oganesyan

"Você é aterrorizante, estranha e bela;
Uma coisa que nem todo mundo sabe como amar"

- "Para mulheres difíceis de amar", Warsan Shire.



sexta-feira, 6 de junho de 2014

Os Primeiros da Gangue a Morrer


(Para Marlon Brando, Neal Cassidy, Amy Winehouse, Cazuza, Chet Baker e Maysa)

Você sabe. Sempre há esse cara ou aquela garota com um magnetismo peculiar. Que se destaca em meio à turma. Que centraliza as atenções. Que desperta amor e ódio na mesma intensidade. Que encobre suas falhas com gestos de delicadeza e extrema fragilidade. Ou que explode em gritos e ameaças contra aqueles que lhe estendem a mão. Que transformam a vida de todos ao redor num inferno. E ainda assim ninguém consegue imaginar uma vida sem eles. Existem essas pessoas que “nasceram do lado errado do rio” e nunca se importaram com isso. Que são talentosas, mas seu principal dom é de serem muito maiores que elas mesmas, de terem uma reputação que chega antes delas, de terem seu nome atirado à lama e elevado aos céus na mesma proporção e simplesmente não se importam. Ou fingem que não se importam e faz com que as amemos mais. Há essa mulher ou aquele homem que, diante deles, nos sentimos encarando um abismo sem fim. Não conhecemos seus demônios. Nos piores dias, os julgamos; nos melhores, desejamos ser como eles, ou ao menos beijar-lhes a face. Seres que encarnam os perigos do vício. O risco de voar alto demais. A loucura à espreita. A escuridão que é consequência natural da luz. Os tons de cinza entre o preto e o branco. Todo veludo e todo espinho possível no espírito humano. No fim das contas, apenas isso: Humanos. Falíveis. Apaixonantes. Os primeiros da gangue a morrerem. 



quinta-feira, 5 de junho de 2014

Closes Exagerados



"Eu gosto de ler declarações descaradas de amor. Tô falando sério. Eu mesma vivo rascunhando algumas pra deixar em stand by. Eu até escreveria 'vai que...', mas os publicitários fazem questão de roubar todos nossos clichês e a gente tem que se virar de outra maneira. Eu costumo apelar pro humor, ou pra tentativa de, porque caso a coisa não funcione eu saco a desculpa do 'imagina, era só uma piada'.Mas acho bonito pacas quando alguém fala de algum detalhe (o que a publicidade não nos rouba é sempre do Roberto Carlos) do outro, um maneirismo, algo que parece pertencer única e exclusivamente a quem notou. Não existe outra forma de gostar senão aquela de se encantar por coisas aparentemente banais aos olhos dos outros. Já me apaixonei por uma virada de página de livro, um engasgo, um palavrão fora de contexto, um beijo roubado na Martins Fontes que não ficou devendo nada ao de Wong Kar-Wai. Aliás, esse cara tem as manhas de traduzir o amor num close exagerado de um pescoço. E na verdade é isso. Closes exagerados. Sei lá que mecanismo do universo rege tudo isso, e pouco importa se existe algum. Por um tempo são essas pequenas peculiaridades, sob as lentes de uma grande angular, que nos estampam sorrisos bestas na cara. E, no meio dessa merda toda, um sorriso besta na cara é bem mais do que a gente um dia esperou."

Adriana Brunstein

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Poesia



Pra quem vem até aqui procurando coisa boa, não precisa perder tempo lendo meus textos e vai direto pra cá:

Poemas, Cubas & Torneiras

Muita coisa boa num canto só. Ou talvez eu esteja só sentimental demais. Vai lá. De nada.


Mais ou menos a terra

(Maira Parula)

Parece que a língua da gente vai diminuindo
e você não tem mais a mesma semana inteira de falar
a mesa ao lado conversa ri
e você não quer estar ali
não porque não goste
não porque não sei
é que não entende
palavras sorrisos
mastigando o coxão duro
das histórias de família
as atualidades
quem fez o gol na final
batata não se guarda na geladeira
a criança que saiu invertida
mas perfeitinha
os smarts tocando
todas as avós conectadas
e você arrancando seus fios da parede
porque não sabe falar mais
não sei se quero
a chuva completa o seu copo
todos vão para dentro
no céu o refluxo de cores
ninguém vê
você os engole
e até salivados não calam a boca
mais uma vez você não quer estar ali
bebe a chuva inteira e os afoga
o barco em ponto morto
as vozes vão ficando mais longe
dentro de você não pedem socorro
dentro de você celulares não pegam
todos se deitam
todos se calam

dentro de você
é mais ou menos a terra.


domingo, 1 de junho de 2014

Traficando Desesperança em Tempos de Paz


Sinto como se houvessem escrito ofensas em minha lápide;
Sinto um tremor: Como se outra pessoa houvesse confessado e morrido pelos meus pecados
E não houvesse sido Jesus Cristo, apenas uma desconhecida cantora de jazz em Cuba;
Sinto como se neste exato momento alguém cavasse um buraco
Um buraco lento e seco e irregular embaixo de minha casa,
E temo que descubram o local exato onde enterrei a criança que eu costumava ser.
E neste buraco plantem uma árvore trêmula de flores brancas que assombrará meus dias;

Sinto como se houvessem assaltado meus sonhos;
Como se deus existisse por um minuto todos os dias;
Como se a faca com que me corto estivesse cega
“E tu me negaste o vinho com que te inebrias...”


Sinto como se aquele homem que mora através do vagão
Fosse agora meu amigo, me cobrisse de presentes e beijos;
Sinto como se eu precisasse ajuda-lo;
Sinto que algo nos liga profundamente:
Dor, sombras,

Troquei as ultimas lâmpadas por luzes de natal;
Os morcegos se foram de uma vez,
Dispersos convivas sentam-se comigo a mesa

E sinto como se apenas essa noite eles não pudessem me fazer mal.


R. (Dezembro, 2010, e ainda atual...)

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...