Diz-se da memória que se trata de um estoque de experiência que reservamos e ao qual recorremos para enfrentar situações análogas, identificar padrões e estar preparados para contingências futuras, seja para corresponder ou frustrar expectativas de outros. De qualquer maneira, é uma forma de organizar e entender as coisas. Entretanto, pouco se sabe sobre o funcionamento deste mecanismo de armazenamento de experiências passadas, esta caixa preta; apenas que – óbvio – não retemos aquilo que não vivemos e que ninguém vive se só vive no presente.
Naquele princípio de noite, agíamos como se nada houvesse acontecido na manhã anterior. Nossos passos graves e nosso silêncio felino estavam em ressonância, mas o que havia acontecido parecia tão fora de todos os esquemas mentais que criáramos com a intenção de nos precaver do mundo, que daquela experiência só guardamos sensações sem ter aprendido coisa alguma com elas, como dois amadores à véspera de um grande acontecimento. Temíamos voltar àquilo que, independente de ter ocorrido há pouco mais de vinte e quatro horas, parecia não existir em nossa memória, enquanto os sentidos alertavam que algo estava fora do lugar, como um vulto que vemos com o canto de um dos olhos, ou a sensação de estar sendo perseguido ou um sonho do qual não nos lembramos, mas que deixa um leve incômodo. Quase falei para você: “pensei muito nas últimas palavras que você disse”, mas algo me impelia a pensar que essas poucas palavras poderiam fazer explodir o universo inteiro, ou talvez retirar a solene lua de sua órbita. Então, apenas prosseguimos. Seu olhar, ou melhor, os poucos olhares que você me lançou, me levaram a crer que dentro de ti se passava algo semelhante, certo temor de cometer um pecado tão grande, tão grande quanto derramar sal nas chagas de Cristo. Então, prosseguimos. Uma velha cruza nosso caminho e em sua sabedoria ela nos observa, certamente imaginando que fazemos aquilo que todos fazem com nossa idade: perdendo tempo pensando em como não se arrepender de alguma coisa. Ela sorri então afável, sabe que isso é da juventude e ela mesma deve ter desperdiçado muito tempo desse mesmo jeito. Uma chuva fina começa a cair, seguimos caminhando tentando não pensar no assunto. Em frente a uma loja de calçados, você pára e observa um sapato idêntico ao que você perdeu naquela manhã, e que eu sabia muito bem como. E me diz que perdeu um sapato como aquele, com um olhar triste. “Como você o perdeu?”. A pergunta é a deixa, e você, preparada, animada com a possibilidade aberta de eliminar de uma vez aquele desconforto causado por um corpo estranho no campo de suas memórias, responde: “quando desci do trem, chegando de N****” e me conta toda uma estória sobre um lugar, uma família, um mar infinito e um trabalho, todos hipotéticos, improváveis, mas eu acredito plenamente, enquanto você fala a própria verdade se delineia no contorno de seus lábios e eu silenciosamente rezo para que você não deixe de falar, não hesitaria um segundo entre escolher entre sua boca e a verdade; e se você esteve onde disse que esteve, então nunca estivemos juntos, naquela manhã nublada, e estas sensações não passam de devaneios. E criamos, enfim, uma memória, juntos lapidamos uma experiência para nos livrar de um sentimento e assim continuar nossos projetos paralelos, sem precisar esperar pelo próximo abalo sísmico, ou pelo próximo trem, que sabemos que inevitavelmente virá, e do qual nos esqueceremos, olvidados em nossas memórias arquitetadas.
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