terça-feira, 28 de maio de 2019

Confissão - Mais de 30 anos na estrada e poucas lições



Vergonha. Deixem-me falar aqui sobre o abismo que pode haver entre perda e reparação. Ou talvez eu devesse começar falando sobre confusão, pra começar. Confusão e confissão. Porque foi aqui que escolhi vir para expor numa espécie de cirurgia cardíaca aberta ao público as atrocidades que faço ao meu coração justamente com a mais pura (e patética) intenção de destruí-lo de uma vez, mas que acaba por acalmá-lo. É a este tipo de comportamento que se referem os budistas quando dizem que a principal causa de sofrimento é a busca por evitá-lo, ou a ruminação. Goethe, que devia ser mais inteligente que qualquer budista que eu venha a conhecer um dia, elaborou uma teoria mais complexa quando diz ser Mefistófeles uma expressão daquela força que, tentando fazer o mal, acaba por sempre trabalhar pelo bem. Quero dizer, eu crio esse imenso catálogo de pecados, frustrações e erros que deveria me expor ao ridículo e que eu chamo de poesia e o que consigo realmente é algum alívio para um coração cansado das derrotas minhas de cada dia e a compreensão de alguém que me enxerga e que talvez nunca visse além da superfície não fosse esse meu vício em reabrir feridas, ora de maneira mais delicada, ora mais extrema. Minhas confissões são confusas, era isso que eu pretendia dizer no começo desta carta que se pretendia bomba. Eu estou perdido e eu estou com medo. Há uma liberdade muito grande em admitir que se tem medo, e eu precisava dizer isso. Meu coração vem batendo numa frequência errada. Calma, doutora, por enquanto isto é só uma metáfora, mas não seria de se espantar que clinicamente eu desenvolvesse uma arritmia em harmonia com o descompasso da minha vida. Eu pretendia fazer tudo direito e consertar certas coisas, a começar por mim mesmo. Tentando ser o que não sou, afastei-me do que eu era sem saber que quem eu era, era o que eu tinha de melhor. Não creio que tudo esteja perdido, é só que entre perda e reparação pode haver um abismo de vez em quando, o segredo é não olhar para ele e fazer de conta que é possível, já que no fim das contas só vai importar mesmo o quanto você aproveitou a jornada, e eu, no meio de minha confusão e entre tantas palavras abafadas e linhas mal escritas, ainda sou capaz de encontrar alento e prazer em um livro de poesias emprestado e conversas ingênuas com alguém que você acabou de conhecer e despertou sua curiosidade. São as noites que valem a pena e te fazem dormir citando Eclesíastes, “que cada dia cuide do seu mal”.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Sem Resposta


Até onde posso ver, nada está suficientemente claro. E eu tento entender por que. O senhor que veio até mim no ponto de ônibus, há dez anos, pra me contar que sua filha havia suicidado porque não passou no vestibular pra medicina, ele tentava entender. A jovem que ia toda noite ao mesmo ponto esperar pelo amante que prometeu que viria e nunca veio, queria entender. E eu sempre imaginei que os jogadores daquela seleção da Hungria em ’54, por muito tempo devem ter acordado sobressaltados no meio da noite tentando entender. E o cachorro expulso do bar, esperando do lado de fora algum resto de comida de presente, também ele tenta entender? A todos falta alguma coisa. Há mais na foto do que o olho pode enxergar, me diz a canção, e isso vale pra todo mundo, então porque me sentir tão deslocado? Será que entre os andrajos e veredas de uma vida torta não há espaço para um pouco de suavidade? Ou este gosto de decepção já está tão impregnado na boca que mesmo as canções mais doces soarão sempre amargas? Eu só sei que o homem que se olha no espelho pela manhã não é o mesmo que faz suas orações antes de dormir, e se um dia este rio resolver correr na direção contrária, não será por não ter tentado seguir a corrente comum e ele não deixará de ser um rio por conta disso. Não sei. Em algum lugar entre a violência do gozo e a resignação de um adeus devem estar a calma, os sorrisos e um café da manhã livre de pressa. Em algum lugar que meus olhos ainda não alcançam, deve estar aquela que com a suavidade da voz me põe em contato comigo mesmo, e faz o mundo girar como se existisse mesmo um eixo.

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...