domingo, 31 de janeiro de 2010

Pergunta-me



- Mia Couto.

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

pergunta-me
se te voltarei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo a folha rasgada
na minha mão descrente

qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

E eu continuo viciado nesse filme...




Acontece que, até hoje, o personagem cinematográfico por quem eu tinha maior afeição, ainda era o Freaky Edward, de “Edward Mãos-de-Tesoura” (seguido bem de perto por Hannibal Lecter). Sua doçura de monstro que fica sozinho após a morte do criador, sua bondade apesar da aparência soturna, seu estilo Frankstein, me cativara (meu MSN não me deixa mentir). Mesmo esse não sendo mais um dos meus filmes preferidos, o personagem e minha identificação com ele permaneceram. Não só Ed era gracioso em sua imperfeição, mas a atitude da cidade em relação a ele me aproximava dele. Acontece que hoje uma menininha tomou esse lugar. Diria que se trata de uma paixão esquisita minha. Eli, a vampira de Doze anos de idade, de “Deixa ela entrar”, me tocou. Ed era meu duplo quando eu tinha treze anos. Eli é apaixonante em sua solidão e sua sede. Com ambos me identifico, mas era a Eli que eu me dedicaria a passar a vida conseguindo sangue humano para poupá-la dos dolorosos assassinatos. Eli é uma vampira. Tem doces olhos injetados de sangue, parece indefesa mas é uma assassina. Conhece a ternura dos que só têm a noite como companhia e dos poucos corações solitários que cruzam seu caminho.
Eli, você pode entrar.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Jogos, mentiras, sussurros... sirva-se.


Conte-me mentiras com a calma dos covardes.
Não há nada errado nisso.
Minta com a consciência limpa
Minta sem fazer sério juízo;
Vivo, se um dia topei esse jogo, não foi na esperança de ganhar,
Mas só pra ter o Valete em minhas mãos.
Mas, se você não sabe jogar,
Se você não sabe jogar,
Restam os ases da mentira, pontas-de-lança
Desse jogo perigoso, eu sei,
Criminosos do acaso somos todos
Doces venenos em copos de Whisky, já tomamos,
De duros golpes que partiram nossos ossos,
Nos recuperamos;
Então por que não mentir?
Com prazer sádico, como Caetano:
Pra que rimar seu amor com minha dor?
Não minta pra mim:
Este jogo um dia vai ter fim?

E ela disse, temendo dizer a verdade:
“Um dia, um dia, um dia...”
E cruzes surgiram na areia da praia,
Duros espinhos brotaram em meus braços
E uma violenta tempestade de areia se instalou
Sobre minha cama,
Eu nunca fui tão feliz outra vez.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Deixa Ela Entrar




É muito gratificante, em tempos de “Crepúsculo” e “Lua Nova”, ver um filme de vampiro em que está presente algo tão simples como o princípio de que um vampiro não pode entrar num local particular sem ser convidado. Além de demonstrar inteligência e conhecimento do assunto, é uma prova de elegância maior, ao escolher um título que faz referência a esse aspecto da mitologia vampírica, que está longe de ser um detalhe. Explico: O filme sueco é um filme delicado, e, mesmo quando violento, poético. Pertencendo à longa tradição dos bons filmes de vampiro, “Deixa ela entrar”, do diretor sueco Tomas Alfredson dá atenção à atmosfera, fotografia, cenas e coloca lirismo onde poderia haver só uma estorinha de horror. O vermelho, cor do sangue que alimenta Eli, é poupado no filme e aparece poucas vezes para lembrar de que se trata a estória. Eu sentia arrepios quando via um objeto vermelho. O filme tem cenas memoráveis, inclusive uma que remete à cena do dedo cortado em “Nosferatu”. E lindas cenas dos personagens centrais juntos, Oskar, um garotinho introvertido, perseguido no colégio e fissurado por crimes violentos; e Eli, a vampira que já tem doze anos de idade “há muito tempo” e vive sua maldição apenas contando com seu suposto pai para ajuda-la. E a utilização da maldição vampírica para tratar de temas humanos também aparece. Aqui, são o medo e a solidão de duas crianças, e o carinho e a ternura surgindo de lugares mais improváveis, a doçura dos dois contrastando com a situação terrível em que eles (Oskar e Eli) se encontram. O filme nunca fica agridoce, tudo funciona perfeitamente em paradoxos, dos sustos às declarações de amor tão mórbidas quanto inocentes, ao delicioso final com gosto do sangue.
Um filme inesquecível. Poucas sensações são tão boas quanto ver as luzes se acendendo, olhar para trás e ver o projetista e estar um pouco mais feliz por estar vivo.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Numa manhã quente...

Vou me içar aos céus numa catapulta feita de meias verdades. Esses pequenos indícios, frágeis esperanças que eu espero que sirvam ao menos para me colocar por alguns segundos em algum lugar onde não se precise de guarda-chuva nem porta-moeda, apenas as ninharias do coração e os delírios da mente. Um boteco com um barman que saiba fazer um Dry Martini, um gato grande e amarelo que arranhe minha perna e a musica... pode ser apenas boa. Mas que haja musica. Não estou procurando pelo Santo Graal. Só quero um tempinho nesse lugar misterioso. Cheirar o doce perfume de pêssego das meninas de lá. Depois disso eu agüento mais um dia por aqui. Até a vontade surgir de novo. E lá irá mais uma vez a mariposa girar em torno da lâmpada incandescente...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Veredicto


Mais um? Vai continuar?
Você não vê?
O inverno de nossas vidas se aproxima
E já estamos há tanto
Experimentando esse frio congelante
Que nem nos importamos mais
Com os pássaros mortos e as plantações de milho perdidas

Em nosso Horizonte,
Desaparecem as crianças mudas
Que tanto tentamos proteger empunhando armas e
Cuspindo Desespero.
Mas elas continuam vindo em nossos sonhos
Assustadoras e reais
Encantadoras e letais
E gritamos, pois elas não podem ter saído de nosso peito.

Em nosso Horizonte,
Os deuses que escolhemos viraram pedra
E eu tentei tanto te dizer que eu não seria capaz...
E nossas drogas não serviram para aplacar o desejo
E tivemos que nos devorar tão vorazmente
Que mais um mês, um ano e não restaria nada.
Talvez tenha sido divertido, talvez mórbido,
Mas provavelmente foi apenas real.

Em nosso Horizonte
Eu me via mentindo mais e mais
Um deus em sua plena onipotência
E eu juro que quase acreditei
Quem diria... Quase...
E vi você mais forte que eu
Colecionando feridas que eu nunca poderia tratar
E beijando desconhecidos
Que eram sempre
Tão estúpidos quanto necessários.

E agora o palco fica livre
E posso encenar aquela velha peça
Talvez até minha mãe venha ver.
Comprei um buquê de flores, querida;
Esqueci-as dentro do trem, e ele já passou...
Fica claro então que esse deus
Nunca foi tão onipotente assim.
A guerra acabou
E é melhor você partir
E encontrar alguém que não viva num permanente estado de sítio.

Julho, 2004.


 Reprodução Interdita - René Magritte

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Delírio com Zaratustra


Foi irresponsavelmente que aquele velho bateu à minha porta, e foi sem pensar que eu abri e o convidei para um chá. Ele falava baixo e com convicção, dominava as palavras como outros dominam seres humanos. Não me calou uma vez sequer, ainda que não tenha parado de falar um instante. Falamos das coisas da vida, das inconstâncias dos quereres, da estupidez e da alegria. E nada fazia sentido naquela ilógica fantasia de dois seres humanos se entendendo profunda e perfeitamente. Quantas noites de segunda-feira teremos deixado cinzentas com essa fantasia? Quantas amarguras, lances de escadas reflexivos deixando pra trás apenas uma porta batida com força, um copo de conhaque pela metade, uma camiseta branca atirada ao chão, cinzeiros quebrados espalhando as cinzas de quartas que nem foram de carnaval? E quantas pessoas foram enganadas pelas promessas de um dia melhor, por um “muito obrigado” ou “bom dia” dito mecanicamente, quem foi que me ensinou as lamentações noturnas de uma embriaguez genuína? Esse velho. Suas histórias. Seus olhos de doce crueldade. Sua insensatez. Esse vendedor de relíquias antigas roubadas dos templos de deuses esquecidos que outrora foram venerados por loucos e santos. Nos damos as mãos como cúmplices de um crime sujo a ser cometido. Refletimos sobre isso sem muita paciência ou método, irrefletidamente nos atiramos à estrada perdida.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Romance Noir




"Mas, nada de fantasias mórbidas desta vez", avisou ela com sua voz rouca ao telefone. Seu olhar confuso, trêmulo. "De que serve uma fantasia que não seja mórbida?". Esse era mesmo ele, alguém sem muito talento para as coisas que são exibidas à luz do sol. Ela desligou. Em alguns minutos estaria ali. Ele desligou o telefone devagar, ainda confuso, as unhas raspando o vidro da janela, não mais pintado de preto desta vez. Imaginou como seria quando ela chegasse ali, o que diria. Queria conversar. Expor a ela sentimentos e imagens e palavras que passam por sua cabeça e que não pode confessar facilmente para ninguém. Como isso: Tantas mulheres por aí, todas elas belas, gostosas, doidas para serem fodidas incansavelmente, doidas para gozarem subitamente, incontrolavelmente, para ouvirem todas aquelas palavras que se espera ouvir de quem você tem um contato carnal perfeito, e definitivamente não é nada de "eu te amo" ou "Quero você para sempre", ou talvez seja isso mesmo, mas dito de uma maneira mais chula, vai saber. E esses pensamentos, que cheiravam a chauvinismo, possuíam uma origem nebulosa que tinha a ver com uma compreensão extra-amorosa da solidão, pensamentos de quem é sozinho por condição, mas que respira o néctar sangrento que escapa das veias furadas ou cortadas ou somente porosas dos não-estabelecidos. Isso - essa desculpa complacente forjada em noites de fogo - era o que ele esperava poder compartilhar com ela, ela sabia disso e por isso soltou aquele "nada de fantasias mórbidas". Mas, se ela não queria fantasias mórbidas, porque insistia em responder a seus chamados? O sexo nem devia ser tão bom assim, uma vez que ela só se dirigia até ele por um acordo unilateral, no qual ela mesmo ganhava bem pouco e era obrigada a ceder a impulsos, pedidos, ordens que nem sempre desejava realizar. O que ela ganhava realmente com aquilo? Sim, é isso, as fantasias mórbidas vinham antes do sexo, não durante. As posições, os gestos, os insultos, as idéias, os gritos, o exibicionismo, o que mais ele pedisse, nada era reprovável, mas ouvi-lo despejar fantasias como "ontem à noite imaginei como seria entrar num ônibus de madrugada e ficar pedindo cigarros a todos que entrassem, durante todo o itinerário, só para puxar assunto e quem sabe uma trepada", isso ela não queria. Isso era o que ele pensava. Talvez ela gostasse? De ouvir? De trepar? Mas ela viria de qualquer jeito. E ele precisava falar. Desta vez falaria sobre a sensação permanente que tinha de que estava sendo seguido, de como uma vez caminhou por um bairro nobre e percebeu um siena branco que cruzava com ele a toda esquina que dobrava, um passeio só para terminar com um maço de cigarros, e que quando parou num café para tomar algo, alguém sentou a seu lado e ele sabia que era a pessoa do siena, tinha certeza. E a pessoa sentou a seu lado e pediu o mesmo tipo de café que ele, com todas as sutilezas, e que essa pessoa só tomou o primeiro gole depois que ele tomou o primeiro gole. "E aí?", ela perguntaria. E aí nada. Ou melhor, e aí trezentas estrelas subitamente brilharam no céu, amarelas, naquela tarde de café com chantilly, todos os carros pararam e todos eles tocavam Radiohead e bastou ele ouvir a frase "Immerse your soul in love", que lágrimas subiram aos olhos e aí ele deixa de se sentir perseguido e ninguém está tomando café a seu lado. Ele ouve o portão abrir, e ela o surpreende com um sorriso de Mona lisa no canto da boca. Sem dizer nada ela entra no quarto, deixa escorregar a bolsa pelo braço até o chão, tira os sapatos, deita-se na cama apoiada sobre os cotovelos e diz, maliciosa (com o veneno de quem finge estar cumprindo meramente sua parte no trato), "estou pronta, faça o que quiser". E ele: "Já te contei como sempre tenho a impressão de estar sendo seguido na Praia do Canto?".
E lá se vão cinco anos de romance, mais ou menos sempre desse jeito...


terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Atirado no sofá, fumando um cigarro e escutando Charlie Parker tocando "Lover Man", adicionando à deliciosa melodia da musica seus pequenos sopros geniais com seu sax, eu fico me perguntando como é possível que eu por vezes consigo ser tão problemático, triste e catastrófico. Basta relaxar, dexar a mente solta e sonhar, com lugares e pessoas distantes ou obervar com atenção o céu mudando de cor ao entardever. A vida pode ser boa assim.

"Um dia você chegará,
E irá secar as minhas lágrimas,
E sussurrar pequenas doçuras em meu ouvido;
Oh, todos os beijos,
Tudo que temos perdido.
Amante, onde você estará?"

("Lover Man", Jimmy Davis, Roger Ramirez, e James Sherman)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O Poço e o Pêndulo


A primeira vez que li “O Poço e o Pêndulo”, tinha  11 anos de idade. E que transtorno aquela leitura provocou em minha alma! Pensando retrospectivamente, posso ver agora como muito do que sou está relacionado ao tumulto causado pelas leituras de Alan Poe. Para aquela criança que eu era, de repente toda a verdade do universo parecia só ser atingível através das experiências mais horrendas, os delírios mais absurdos, as sensações mais radicais. Eu consegui ver na violência e no horror, beleza; na solidão e na melancolia, descobertas; na morte, revelação. Não só meu gosto estético foi influenciado, mas minha visão de mundo, para além do que mesmo eu ou você que me conhece possamos reconhecer ou admitir. Poe cria uma sinfonia de medo, angústia e desespero para os nossos nervos, e há sempre o risco de que nos acostumemos a isso. A tragédia, sempre ela, dita o ritmo de seus escritos. O fim que espreita está sempre fora de nosso controle, para além de nossa vontade e esforços. Sugiro que quem gostar do tema assista a esse filme (ou curta) de Jan Svankmajer, baseado nesse conto de Poe. É belo. E humano. Ah, mas não humano como está em moda dizer hoje em dia. É demasiado humano...






quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Travessuras


 Luis Buñuel


Era em Madrid, meados da década de 20. O ambiente artístico era invadido pelo jazz norte-americano, pelas idéias de Freud e Marx e pela avant-garde. Uma revolução minimalista, sutil e insidiosa. Os amigos Luis Buñuel, Garcia Lorca e uma amiga dos dois que não foi identificada na história tinham maneiras peculiares de se divertir. Numa tarde de sol, essa morena de olhos claros vestia-se como uma típica prostituta madrilena e subia num bonde lotado, atraindo os olhares ameaçadores das senhoras que se sentem desafiadas por aquela ousadia e dos senhores hipócritas que temem serem reconhecidos. Na parada seguinte, Lorca tomava o mesmo bonde, vestido de padre, e começava a molestar a moça, para espanto de todos. O bonde seguia seu trajeto, e então Buñuel, fantasiado de policial, subia no bonde, batendo em Lorca, e repreendendo-o: “Por que vocês padres estão sempre incomodando as prostitutas”? A perplexidade era geral. A indignação também. Ainda estamos na mesma Espanha católica e machista, mesmo que se trate “apenas” de uma travessura de jovens ateus. Na parada seguinte, os três amigos desciam do bonde e iam para um bar, beber até cair. Eram apenas pessoas entediadas.


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Veredas Blues


Onde estará meu antigo diário perdido? Preciso encontrá-lo. Nele, inscrevi o que havia de mais importante em todas as minhas experiências e erros (seriam erros e experiências meros sinônimos?). Toda vez que o destino tocou-me fantasiado de acaso, todos os fotogramas de minha pequena rebelião contra a mera existência, os antigos sinais de religiões pagãs decifrados, a língua secreta dos gatos, os infanticídios acobertados, as doces perversões humanas; além, claro, dos sons demoníacos saídos dos saxofones, guitarras, trompetes e gargantas sagrados, os sonhos exibidos em formas de sombras dançantes, as palavras que exprimem o que não tem nome; tudo estava gravado ali, naquele pequeno caderno coberto de recortes delicadamente arranjados por mãos sutis, e agora me sinto mudo, disperso, incapaz de lembrar quem sou sem este registro onírico das paisagens que visitei em sonho ou na terra. Eu gostaria de compor um blues com aquelas palavras. Um blues para as veredas que tenho atravessado. Um blues pelas estradas que virão, outro por aqueles que ainda sonharão juntos comigo. Eu preciso de uma canção no escuro. Preciso de vozes que acalentem, e de olhares ameaçadores. Preciso do meu livro imaginário de poemas perdidos em alto mar, e que a garrafa chegue a seu destino e encontre todos os corações solitários que puder.

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...