Vergonha. Deixem-me falar aqui
sobre o abismo que pode haver entre perda e reparação. Ou talvez eu devesse
começar falando sobre confusão, pra começar. Confusão e confissão. Porque foi
aqui que escolhi vir para expor numa espécie de cirurgia cardíaca aberta ao
público as atrocidades que faço ao meu coração justamente com a mais pura (e patética)
intenção de destruí-lo de uma vez, mas que acaba por acalmá-lo. É a este tipo
de comportamento que se referem os budistas quando dizem que a principal causa
de sofrimento é a busca por evitá-lo, ou a ruminação. Goethe, que devia ser
mais inteligente que qualquer budista que eu venha a conhecer um dia, elaborou
uma teoria mais complexa quando diz ser Mefistófeles uma expressão daquela força
que, tentando fazer o mal, acaba por sempre trabalhar pelo bem. Quero dizer, eu
crio esse imenso catálogo de pecados, frustrações e erros que deveria me expor
ao ridículo e que eu chamo de poesia e o que consigo realmente é algum alívio
para um coração cansado das derrotas minhas de cada dia e a compreensão de
alguém que me enxerga e que talvez nunca visse além da superfície não fosse
esse meu vício em reabrir feridas, ora de maneira mais delicada, ora mais
extrema. Minhas confissões são confusas, era isso que eu pretendia dizer no
começo desta carta que se pretendia bomba. Eu estou perdido e eu estou com
medo. Há uma liberdade muito grande em admitir que se tem medo, e eu precisava
dizer isso. Meu coração vem batendo numa frequência errada. Calma, doutora, por
enquanto isto é só uma metáfora, mas não seria de se espantar que clinicamente
eu desenvolvesse uma arritmia em harmonia com o descompasso da minha vida. Eu
pretendia fazer tudo direito e consertar certas coisas, a começar por mim
mesmo. Tentando ser o que não sou,
afastei-me do que eu era sem saber que quem eu era, era o que eu tinha de
melhor. Não creio que tudo esteja perdido, é só que entre perda e reparação
pode haver um abismo de vez em quando, o segredo é não olhar para ele e fazer
de conta que é possível, já que no fim das contas só vai importar mesmo o
quanto você aproveitou a jornada, e eu, no meio de minha confusão e entre
tantas palavras abafadas e linhas mal escritas, ainda sou capaz de encontrar
alento e prazer em um livro de poesias emprestado e conversas ingênuas com
alguém que você acabou de conhecer e despertou sua curiosidade. São as noites
que valem a pena e te fazem dormir citando Eclesíastes, “que cada dia cuide do
seu mal”.
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