Eu vejo que essa noite as folhas nas árvores não se movem. Só eu as vejo? Vejo também ela, que brinca com o isqueiro entre os dedos, enquanto mantém o cigarro preso à boca. Mas isso eu sei que mil homens também veem, olhos postos sobre ela. Vejo o tamanho de suas unhas e lembro do fio de seu corte, e sei que isso eles não podem ver ou saber. Vejo seus olhos se acenderem às primeiras notas de uma certa canção e isso ainda me emociona. Na noite que avança, se amplia e escurece engolindo a tudo e a todos tornando todos os gatos pardos e todas as virgens lascivas, imolando a inocência em altares pagãos, vejo-a lançando seus sinais confusos que seduzem, comovem e atormentam. Vejo seus cabelos que exalam perigos. A palavra que sai de sua boca rima com qualquer outra, seja desejo ou crueldade. Vejo o que mais ninguém vê. Uma tragédia que se anuncia, uma cor a que não deram um nome, um espelho prestes a se partir. Vejo-a brincar com a chama do isqueiro com que ela brinca entre os dedos, com a doçura meiga de uma criança. Vejo como tudo isso é tênue, a fugacidade deste e de todos os outros momentos. Vejo que ela se importa comigo. Vejo que eu não devia querer mais do que isso. É o medo o que me move, é a certeza que me detém e nisso estou apartado de todos os outros seres de minha espécie. Irei ao seu encontro enquanto houver uma ponta qualquer de dúvida solta nestes retalhos acetinados e espero que sempre haja. Espero que numa noite qualquer, numa noite como aquela, a loucura irrompa, as vontades corram como cavalos selvagens, para adormecerem por mil anos depois, se preciso for. Deixo que minhas visões me embalem, como a uma criança que conta as estrelas antes de pegar no sono.
(Foto: Anna Aden)
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