(Marçal Aquino)
EPITÁFIO V
Nunca dei presentes a ela, nunca
recebi nada. Não conheci a letra dela, nunca a vi escrevendo. Não sei se sua
caligrafia era redonda ou inclinada, legível ou feia, ou se ela colocava
bolinhas no lugar dos pingos nas letras. Eu nunca disse que a amava nem a ouvi
dizer isso pra mim. Nunca falamos de amor, de filhos, de amantes, de passado.
Do futuro. Fodíamos, apenas.
Nunca soube seu signo nem ela o
meu. Ela não me falou sobre sua flor favorita ou sua cor predileta. Sua
primeira vez. Ela não perguntou sobre a minha. Não sei se ela possuía todos os
dentes. Nunca conversamos sobre religião, não sei se ela acreditava em Deus. Em
reencarnação ou em horóscopo. Não sei se ela gostava de gatos ou se gostava de
colecionar selos. Nunca perguntei se ela se interessava por política, futebol ou
mesmo se tinha o costume de se masturbar. Não sei se ela cozinhava bem ou o
prato de que gostava mais. O que achava da moda, ela jamais me falou. Curtia
samba? E caipirinha? Como foi quando criança, ela não me contou. Qual seu
número de sorte? Eu pagava pra saber se alguma vez aconteceu de ela olhar com
desejo para outra mulher. Os nomes de seus pais, o que ela achava de homens com
barba, das loiras, de armas e de tatuagens – são coisas que eu nunca vou saber.
Não descobri se alguma ocasião ela passou fome na vida. Se teve uma tia
epiléptica. O que achava dos pretos? E dos cavalos? Gostava de novelas? O que
pensava de garotas que pedem a sujeitos que batam nelas na hora de trepar?
Achava o que do dinheiro, essa mulher? Que número calçava? Tinha medo de
baratas. Terá algum dia o pai espancado a mãe na frente dela (e, diante de seu
protesto, mandado que calasse a boca pra não tomar uns sopapos também)? Será
que, como eu, ela achava que felicidade é um negócio que inventaram para enganar
os pobres, feios e esperançosos? Não sei se ela teve um primo que vivia pedindo
dinheiro emprestado. Não sei se tomou drogas um dia ou se era bamba em matemática
no tempo da escola. Se gostava de resolver as palavras cruzadas do jornal. Será
que ela sabia jogar truco? Teve todas as doenças da infância? Tinha ideia de
como é que os caras matam cavalos para fazer mortadela no sul da Bahia? Foi
assaltada alguma vez? Transou quando na verdade estava a fim de dormir e
esquecer? Nunca soube se ela viajou de trem ou de navio. Se teve vontade de
matar alguém que um dia amou. Se cortou os cabelos só para agradar a algum
homem. Se cortou o pé em caco de vidro quando mais nova. Se em algum momento
humilhou alguém e se arrependeu depois. Se gostava de brócolis. Se pensou em
sexo com animais. Se em alguma noite perdeu o sono por conta de dívidas. Se
pensou em fugir. Se lembrava dos sonhos depois que acordava. Se sonhava. Se
tinha medo de doar sangue. Se sorriu para pessoas pensando em manda-las à
merda. Se bolou perversões com integrantes da família. Se sentiu saudade. Eu
nunca soube o que essa mulher achava do papa. E de velhas que ainda usam laquê.
Eu não sei onde ela estava quando a Seleção ganhou a Copa de 94. Se ela tomou
algum porre de vinho. Terá ela fingido alguma vez que a coisa estava muito boa
quando estava apenas morna? Compreendeu o significado da palavra “sacrifício” a
tempo? Será que ela se orgulhou de algo que deveria se envergonhar? Será que se
lembrava da primeira vez que viu o mar? Do primeiro beijo? Será que ela se
sentiu digna em alguma oportunidade? E suja? Eu nunca soube o que ela achava do
salário-mínimo. Da ioga. Das surubas. E das coisas que assustam quando pensamos
nelas. De gente que tem medo do escuro. E de quem sabe que temos escuros dentro
da gente. Eu não soube nada disso. Apenas fodíamos. E era bom.
No entanto, eu sabia sua altura.
Porque ela precisava ficar na ponta dos pés toda vez que nos beijávamos.
E sabia seu peso: ela me falou um
dia, na cama, quando quis ficar por cima.