sábado, 30 de março de 2013

Sete Epitáfios Para uma Dama Branca (Que, Descalça, media 1,65 m e, nua, pesava 54 Kg)

(Marçal Aquino)


EPITÁFIO V

Nunca dei presentes a ela, nunca recebi nada. Não conheci a letra dela, nunca a vi escrevendo. Não sei se sua caligrafia era redonda ou inclinada, legível ou feia, ou se ela colocava bolinhas no lugar dos pingos nas letras. Eu nunca disse que a amava nem a ouvi dizer isso pra mim. Nunca falamos de amor, de filhos, de amantes, de passado. Do futuro. Fodíamos, apenas.

Nunca soube seu signo nem ela o meu. Ela não me falou sobre sua flor favorita ou sua cor predileta. Sua primeira vez. Ela não perguntou sobre a minha. Não sei se ela possuía todos os dentes. Nunca conversamos sobre religião, não sei se ela acreditava em Deus. Em reencarnação ou em horóscopo. Não sei se ela gostava de gatos ou se gostava de colecionar selos. Nunca perguntei se ela se interessava por política, futebol ou mesmo se tinha o costume de se masturbar. Não sei se ela cozinhava bem ou o prato de que gostava mais. O que achava da moda, ela jamais me falou. Curtia samba? E caipirinha? Como foi quando criança, ela não me contou. Qual seu número de sorte? Eu pagava pra saber se alguma vez aconteceu de ela olhar com desejo para outra mulher. Os nomes de seus pais, o que ela achava de homens com barba, das loiras, de armas e de tatuagens – são coisas que eu nunca vou saber. Não descobri se alguma ocasião ela passou fome na vida. Se teve uma tia epiléptica. O que achava dos pretos? E dos cavalos? Gostava de novelas? O que pensava de garotas que pedem a sujeitos que batam nelas na hora de trepar? Achava o que do dinheiro, essa mulher? Que número calçava? Tinha medo de baratas. Terá algum dia o pai espancado a mãe na frente dela (e, diante de seu protesto, mandado que calasse a boca pra não tomar uns sopapos também)? Será que, como eu, ela achava que felicidade é um negócio que inventaram para enganar os pobres, feios e esperançosos? Não sei se ela teve um primo que vivia pedindo dinheiro emprestado. Não sei se tomou drogas um dia ou se era bamba em matemática no tempo da escola. Se gostava de resolver as palavras cruzadas do jornal. Será que ela sabia jogar truco? Teve todas as doenças da infância? Tinha ideia de como é que os caras matam cavalos para fazer mortadela no sul da Bahia? Foi assaltada alguma vez? Transou quando na verdade estava a fim de dormir e esquecer? Nunca soube se ela viajou de trem ou de navio. Se teve vontade de matar alguém que um dia amou. Se cortou os cabelos só para agradar a algum homem. Se cortou o pé em caco de vidro quando mais nova. Se em algum momento humilhou alguém e se arrependeu depois. Se gostava de brócolis. Se pensou em sexo com animais. Se em alguma noite perdeu o sono por conta de dívidas. Se pensou em fugir. Se lembrava dos sonhos depois que acordava. Se sonhava. Se tinha medo de doar sangue. Se sorriu para pessoas pensando em manda-las à merda. Se bolou perversões com integrantes da família. Se sentiu saudade. Eu nunca soube o que essa mulher achava do papa. E de velhas que ainda usam laquê. Eu não sei onde ela estava quando a Seleção ganhou a Copa de 94. Se ela tomou algum porre de vinho. Terá ela fingido alguma vez que a coisa estava muito boa quando estava apenas morna? Compreendeu o significado da palavra “sacrifício” a tempo? Será que ela se orgulhou de algo que deveria se envergonhar? Será que se lembrava da primeira vez que viu o mar? Do primeiro beijo? Será que ela se sentiu digna em alguma oportunidade? E suja? Eu nunca soube o que ela achava do salário-mínimo. Da ioga. Das surubas. E das coisas que assustam quando pensamos nelas. De gente que tem medo do escuro. E de quem sabe que temos escuros dentro da gente. Eu não soube nada disso. Apenas fodíamos. E era bom.

No entanto, eu sabia sua altura. Porque ela precisava ficar na ponta dos pés toda vez que nos beijávamos.
E sabia seu peso: ela me falou um dia, na cama, quando quis ficar por cima.


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