Eu estava lá, na fila pra comprar o livro do cara, e a letra de "Nossa vida não vale um Chevrolet" não saía da minha cabeça. "Eu sangro, eu te ligo no meio da noite, pra dizer que o Mal, o Mal mora em mim". Nem vou entrar nesse papo de identificação e da sintonia com alguém que não conheço. Mas esse assunto do fantasma que habita em cada um, o "inimigo interno", sempre me perturbou. E é inevitável que, acompanhando os textos do cara, eu arrisque dizer que sei do mal que ele está falando. Mais inevitável ainda que eu compare com meus próprios demônios, comece a especular. Sei lá. Não acredito nisso, mas devemos ter nascido sob a mesma lua, sob o mesmo "signo ruim" daquela música que Hendrix regravou. Destinados a manter distância da humanidade, a mesma que desejamos conhecer, observar, e (por que não?), amar. É que eu não sei usar o amor, como diria Clarice? Pode ser. Mas não vai adiantar nem todo amor do mundo pra retirar esse tumor maléfico, essa certeza de ter nascido do outro lado do rio, esse prazer em caminhar em silêncio na escuridão. Só pra não ser notado. Para que, imensos e escuros, somente meus olhos resplandeçam, nada mais. A violência dessa certeza. Há dias em que acordo com a vontade de encontrar com alguém, qualquer pessoa, e iniciar aquele tipo de desabafo sobre mim que termina quase que inevitavelmente por espantar definitivamente meu interlocutor. Mas não quero afastar aqueles que amo. Há realmente coisas assustadoras aqui dentro e já me sinto vitorioso de não deixar isso vir à tona sempre. No máximo, os mais observadores vão notar pequenos sinais enquanto tomo meu gole de cerveja e fico distante da conversa que se desenrola, viajando por sabe-se lá quais outras veredas. Talvez daí esse cancro que só aumente e que vai acabar me matando. É que é muito difícil explicar para as pessoas que, por mais que todo carinho não adiante para afastar a sensação de que nasci errado, o esforço delas não é em vão. Mas é assim, vai sempre parecer ingratidão, egoísmo, cegueira. E quem sabe se no fundo não é mesmo? Espero que não. Mas até que fique provado, é só instinto de sobrevivência. Mas algumas coisas aliviam essa sensação. Cúmplices, amantes, soulmates. E esse mundinho indecente do cinema, poesia, música, muita música. E a banda do Bortolotto, "Saco de Ratos", é o tipo de som que deve rolar no inferno se ele for um tipo de bar; e ficar ali, curtindo aquele som, enchendo minha cabeça de pensamentos perversos, felizes e melancólicos ao mesmo tempo, fez a diferença. E agora vou passear meus dedos pelas páginas de seu livro, "Um bom lugar pra morrer". Título adequado, epitáfio pronto. Não saí de lá conhecendo nem mais nem menos o Mário, mas fiz um acordo comigo mesmo, que não posso inscrever aqui. Mas não tem problema, algumas coisas não foram feitas pra ser acendidas, algumas velas foram feitas para não serem acendidas em orações. E eu ainda não entendi o que ele escreveu pra mim no livro que ganhei naquela noite, mas bem que poderia ser um mapa pro inferno mais próximo.
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