quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Rearranjos

"Opa!"; Ele já entrou tropeçando, esbarrando em alguma coisa estranha na escuridão da casa. Se deteve. Não deveria ficar assustado, afinal de contas aquele já não era mais o seu lar, aquilo ia acontecer em algum momento. Já não há mais tempo sequer para um triste olhar de despedida, um adeus a toda uma obra erguida a partir de momentos que agora teria de deixar para trás. "Nem ao menos um instantâneo final, nenhuma saideira", pensava ele enquanto tateava cauteloso objetos potencialmente fatais, arranjados de uma maneira que a suas mãos pareciam aleatórias. A sala já não era aquela cheia de fumaça e música e conversas madrugada adentro. O quarto, que jogos perigosos e excitantes ele poderia guardar agora? Preferiu nem entrar. Cruzou a cozinha, com cuidado mas tentando ser o mais ligeiro possível para ir direto ao que importava naquele momento. Foi até o local que os dois costumavam chamar de escritório, resgatar daquela casa os discos de vinil e os livros contra o provável incêndio sentimental de que ela seria vítima; antes que o furacão sob o nome de esquecimento resolvesse se abater sobre eles, se é que ele já não se anunciava naquela súbita mudança dos móveis de seus lugares. Já quando se retirava, seus dedos que procuravam o vidro da janela para orientarem a viagem de volta, tocaram um nervo exposto. As violetas na janela, eram elas, ali, prontas para morrer junto com as lembranças. as violetas que lembravam as promessas de manter as flores intactas, a despeito de todo ódio, toda dor e toda loucura que pudesse se erguer naquele lugar. As flores ficariam intactas, um símbolo de que nem tudo precisa sucumbir, que algo sempre resta. Uma luz que nunca se apaga. E agora ele estava no escuro. Só assim permitiu que aquela lágrima caísse, solitária e vã. Empurrou os dois vasos de violetas e suspirou. Agora era só ele de novo. Porque ele não era nada mais que um homem e as canções que o acompanham, um homem e seus pecados, um homem e sua melancolia, tudo que ele tinha a oferece a qualquer pessoa cabia em uma caixa apenas, ou talvez no seu olhar. Se sentiria mal por toda uma vida depois de virar aquela chave na porta de uma vez por todas e atirá-la de cima da ponte na água suja do rio. Seus olhos já estavam habituados à escuridão. Poderia ter pensado em sentar-se no sofá, olhar para tudo que deixava pra trás e refletir se não poderia tentar mais uma vez ficar ali. Inútil tarefa. Escreveria cartas quando se instalasse num inferno mais confortável, e essa busca por si só ele já sabia ser motivo suficiente para retirar tudo seu que havia ali. 

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