sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Peregrino

“Há uma larga estrada aberta e, querida, eu quero que você saiba: Você pode partir rumo ao sul, ou pode voltar para casa" - Jhonny Cash, "Wide Open Road.

Colocou as coisas na bolsa e saiu no meio da noite. Seria tolo perder esta oportunidade, o caminhão estaria lá, a sua espera, para enfim se atirar à vida larga e improvável que lhe aguardava estrada a frente. Antes de abrir a porta, se deteve por alguns minutos para pensar uma última vez no que estava prestes a fazer. Pensando friamente sobre isso, ele sabia que seria só mais uma oportunidade perdida, se deixasse passar.
Não poderia nem dizer que seria a maior delas. Ele já deixou passar chances maiores de dar vida a alguns de seus sonhos e não foi por medo, não foi conformismo, nem o cálculo sobre os custos, foi apenas o hábito de permanecer e dar uma chance a mais a todos os destroços, escombros e sombras que ele chamava imprudentemente de vida. Imprudência, imaturidade ou miopia, tanto faz, ele se acostumou a ver aquele emaranhado de erros e acertos como o substrato de tudo do que ele é feito, como uma colcha de retalhos que, ainda que feia, aquece. Acontece que agora essa colcha está cheia de buracos feitos pelos ratos da rotina e da solidão e deixa o frio entrar quando a noite vem, e algo sopra no seu ouvido que ele pode partir, que não é nenhum crime escapar. E assim ele foi, hesitante mas certo de que nesta vida se deve chegar a algum lugar, pelos meios que estiverem disponíveis. Seus únicos sapatos, já gastos, velhos companheiros de empreitadas abortadas em seus estágios iniciais, amigos que não o abandonaram, estão com ele enquanto ele encara o vento frio, os uivos de cães invisíveis e as incertezas, suas incertezas que assombram feito um raio lunar entrando pela janela e iluminando sombriamente o corredor de um casarão antigo. Entoou suas preces, que ele sempre fazia apenas para o caso de que exista algo que possa escutá-lo numa noite assim tão escura, e pensou nos passos que levaram pra longe seus amigos e tantos outros que estavam sempre se deslocando: Pensou no herói de Reinaldo Arenas perambulando de México a Cuba, em Kerouac pedindo carona em algum ponto da 66, São Francisco de Assis despojado de seus pertences caminhando ao lado de animais, Thoreau perdido em algum bosque perdido no tempo, Buda sendo ele mesmo perdido em caminhadas e visões e enfim em seu pai em algum vagão de trem rumo ao interior desconhecido. Não impediu que as lágrimas viessem. Não mais. Nunca mais tentaria esconder sua fraqueza, não agora que sabia o quanto era forte. Chegando ao posto de gasolina, por algum motivo não se espantou tanto ao ver aquele caminhão já distante na estrada. Estava alguns minutos atrasado, mas quem é que pode saber quanto tempo se leva para consertar toda uma vida?

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