quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"Ele nada compreendia desse insondável mistério que é a existência humana, individual ou coletiva; que escapava ao seu entendimento a mais ínfima malha desse inextricável e infinito emaranhado destes milhões de destinos individuais que se entrecruzam e se separam por artes do acaso; que o mundo provavelmente não tem, a rigor, nenhum sentido (e aqui reproduzia, de memória, confusa citação) 'porque, possivelmente, tudo que existe é fragmentado, incompleto, abortado; eventos com término mas sem começo; outros com apenas o segmento intermediário; coisas que tem a parte anterior ou a posterior, mas não ambas; e tudo isso boiando como num prato de sopa, non qual vez ou outra alguns fragmentos se juntam por acaso para formar um todo'; que somente a Razão alucinada pode pretender ser possível ordenar esse caos, descobrir causalidades nessa infinita cadeia de acidentes".

- Edmundo C. Coelho, "Crônica da Sociologia Assassinada ou Ao Mestre, com Carinho".

Raduan Nassar, Jorge Luis Borges, Baudelaire e, agora, Edmundo Campos, não deixando eu me sentir tão sozinho....

sábado, 25 de janeiro de 2014

Cigano*


Num outono qualquer, ele aprendeu a ler mãos. De terceiros. Mas nada de linhas, eram as mãos seres autônomos, independentes do resto do corpo, cheias de vida própria e desejos tão incompreensíveis quanto reveladores. Os movimentos, a superfície da pele, os toques, a cor, o cheiro, tudo nas mãos lhe surgia como uma ligação do indivíduo com o infinito. Haviam mãos cansadas pelo labor diário que constrói a máquina; mãos furtivas que perturbam a paz de quem se deixa tocar; as assassinas e as inquietas,  que determinam a danação de seus donos; mãos com estilo, belas como o olhar misterioso dos gatos; Bastava olhar para dois amantes de mãos entrelaçadas e saberia dizer quando se separariam. Podia ver alguém dedilhando uma guitarra e saberia qual o blues mais adequado. Dependendo do modo como uma mão de dedos longos e unhas vermelhas segurava um cigarro, poderia dizer se ela era feliz. Leu as mãos de todos os seus amigos, e lhes trouxe boas novas. Leu as mãos de empresários, e previu suas falências. Leu as mãos de loucas, dançarinas, prostitutas e escritoras e se apaixonou por todas elas. Mas não podia ler as próprias mãos. Tentou diversas manhãs, duzentas madrugadas, mas não conseguia. Tentou ensinar seu dom a sua amante, mas tudo em vão. Uma noite, sentado à beira-mar, com uma garrafa de vodka, passou quatro horas e vinte e três minutos observando as próprias mãos, e só via marcas de cigarro, sinais de nascimento, pontas de dedos amareladas e furos de agulha. Esvaziou a garrafa, e chorou. Nunca mais souberam dele. Mas uma vez ou outra surgem estórias de um homem em algum lugar, não se sabe se no Amazonas ou no Marrocos, capaz de beijar sua mão como se adivinhasse um segredo.

*Republicado com alterações.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014








"No more going to the darkside with your flying saucer eyes/No more falling down a wormhole that I have to pull you out/The wroggling, squiggling worm inside/Devours from the inside out/No more talk about the old days, it's time for something great/I want to get out and make it work/So many lies/So feel the love come off of them/And take me in your arms."

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Senso Comum


Assim choram os homens:
Escondidos
e as mãos encharcadas de lágrimas
são enxutas nos lençóis que contem
sobras de noites que ficaram para trás,
e que gritam como os internos de uma casa de custódia.

É de conhecimento geral:
não há desespero em vão, e depois da tempestade
sempre esperamos (...)
E esperamos.

Todos sabem – os pássaros não voam para o lado certo
por senso de direção:

- É instinto de sobrevivência.

R.




terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Minas


(Ana Martins Marques)


Se eu encostasse

meu ouvido

no seu peito

ouviria o tumulto

do mar

o alarido estridente

dos banhistas

cegos de sol

o baque

das ondas

quando despencam

na praia


Vem

escuta

no meu peito

o silêncio

elementar

dos metais


sábado, 18 de janeiro de 2014

Hotel das Estrelas



Algumas pessoas não percebem que estavam perdidas até que estejam enfim trilhando o caminho correto. O contrário também pode acontecer, e a descoberta raramente é indolor. Nenhum deles dois esperava que aquela fosse uma noite comum, mas tampouco esperavam a madrugada ardente e corrosiva que os consumiria num hotel barato onde encontrariam redenção. Abrigo enfim dos perigos sobre os quais tanto falaram em suas conversas que seguiam noite adentro à distância. Eles foram para o bar como dois amigos que não se viam há tempos, ainda que no passado deles existisse uma marca, uma pequena cicatriz deixada por um encontro que eles preferiram, mais por receio que por educação, ignorar ao se abraçarem passados dois anos. Mas, se fizeram isso pensando que seu encontro não reacenderia aquele fogo antigo, a pequena chama que nasceu numa noite de ano-novo qualquer, enganaram-se clamorosamente. Demorou pouco para que nem todas as cervejas geladas pudessem baixar suas temperaturas corporais e que qualquer recato impedisse o tráfico de olhares e toques furtivos de mãos e pernas que não tardariam a se transformar em beijos. Digamos que tenha sido apenas tempo o suficiente para falarem das desventuras que se abateram sobre ambos, algumas alegrias que vieram e pudessem confirmar que ainda se alegravam na presença um do outro. Nada mais precisava ser dito, apenas feito. E eles fizeram. Da melhor maneira, no pior hotel, esquecendo seus pudores no bar recém-deixado e sujaram-se com cada gota que pingava de seus corpos penetrando-se mutuamente, ela com sua língua na boca dele, seus gemidos em seus ouvidos, suas unhas em sua carne e ele buscando à vontade os orifícios dela que lhes dessem prazer, seu pau indo e vindo de sua buceta úmida e quente, seus dedos procurando seu rabo e seus dentes marcando seu pescoço tudo isso sob a luz das estrelas que teimavam em entrar pela janela aberta junto com o vento, o único capaz de trazer algum resquício de frescor na noite abafada naquele hotel e devorando-se pedaço por pedaço amanheceram enfim um dia em chamas que se prolongou além do sol nascente.

O que veio depois, entretanto, transformou esta noite em um sonho distante que por vezes parece não ter acontecido. Aos poucos os amantes foram se descobrindo dois estranhos sem ter o que compartilhar. Quando essa percepção abateu-se sobre os dois é difícil precisar mas o fato é que eles não conseguiram mais se ver ou conversar como antes. Ainda assim, algo permanecia grudada a ela feito um parasita a roubar-lhe as energias, a lembrança dele e daquela noite sobreviveram de algum modo nela, e se a mente não reconhecia naquele homem o mesmo que a desbravara com doçura selvagem, seu corpo ressentia-se de sua ausência. Uma noite, alucinada pela falta que aquele agora estranho fazia a ela, depois de masturbar-se mais de uma vez sem conseguir criar uma imagem sequer dele, porém sabendo exatamente em que pensava, ela saiu de casa. Acreditou estar sem rumo, mas em algum momento de sua jornada sua consciência retornou e ela reconheceu o trajeto que fazia: caminhava na direção daquele hotel. Subiu as escadas enquanto um calafrio percorria sua espinha e sentia-se cada vez mais lubrificada. Pediu à atendente o mesmo quarto e lá se deitou. A maneira como se satisfez assustou-a, mas aquela seria sua primeira noite de sono tranquila desde que ele se foi.

Ele, no entanto, não pareceu sofrer do mesmo mal. Parecia indiferente à estranha distância que se pôs entre os dois. Partiu de volta para sua cidade sem falar com ela. Lembrava daquela noite sempre com um sorriso no rosto, mas curiosamente distinguia os acontecimentos mais tórridos do hotel da mulher que sujeitou-se ativamente a seu desejo, que cavalgou-lhe impetuosamente e que colhera em sua boca o seu fruto. Em suma, lembrava-se da canção, mas ignorava a cantora. Recebeu em seu e-mail os detalhes da noite em que ela sozinha havia ido até o hotel das estrelas. Tratou o fato como uma leve excentricidade, sem maior peso e sem se dar conta do desespero que se abatia sobre ela. O tempo passou e a memória daquela noite se esvaia de sua mente. Demorou um ano até que voltasse à cidade. Ele já não era o mesmo, nem a cidade. Não se animava com a possibilidade de reencontrar conhecidos, antigos casos, velhos lugares. Algum impulso o fez ligar para ela – a velha convicção masculina de que ela sempre estará lá, esperando-o. Ela disse que o encontraria, mas não sabia quando. Os dias se passaram, o momento em que ele partiria novamente se aproximava e ela não dava sinais de que apareceria, e aquilo ia causando uma sensação estranha nele. A cada noite, a lembrança dela se tornava mais nítida. Seu corpo, sua boca, suas curvas, até mesmo sua voz. Não conseguia falar com ela. Solitário, ébrio, uma noite procurou-a ativamente sem sucesso. Seu coração fazendo menção de saltar de seu peito a qualquer instante. Uma saudade repentina de todos os lugares pelos quais havia passado com ela. Passou pelos mesmos bares, pela mesma orla, até se encontrar em frente ao hotel em que treparam pela última vez. Lembrou-se do e-mail dela. Tentou lutar contra a força que o havia levado até ali, mas se viu incapaz de resistir e em pouco tempo estava deitado sobre a cama e seus lençóis suspeitos, no mesmo quarto em que ela estivera meses atrás e poderia jurar que sentia seu cheiro. Não conseguia mover-se, nem mesmo para se masturbar, ainda que as lembranças estivessem mais claras que nunca. Chorou como há muito não fazia, copiosamente, digno de pena. Passou uma noite inteira acordado. Pensava apenas na ironia perversa que subjazia à punição que recebia graças a seu cinismo e descrença. Quando o sol entrou pela janela aberta, encontrou-o estático, com certo sorriso triste a enfeitar-lhe a face.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014


Certo de que seria impossível arrancar-te a dentadas
o resiliente orgulho
contento-me, indulgente,
em acariciar com lambidas seu ego.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Para o Ano Novo


Precisava de algum dinheiro para ter paz. Garantir-me o café, os cigarros, as cervejas e as entradas para o cinema nos dias que viriam. Foi com isso em mente que me preparei para a virada do ano. Minha camisa azul displicentemente abotoada sobre meu corpo, a calça branca, colar no pescoço, um digno filho de Iemanjá, parti para a praia naquele dia 31. Eu fui para a praia porque precisava de algum dinheiro para ter paz. Para enviar as cartas que escrevi com tanto esforço e sinceridade sobre-humana. A garrafa de vinho pela metade foi enfim esvaziada porque eu não precisava estar sóbrio para o que iria fazer. O vinho é um licor que só pode ser apreciado se você se deixa possuir por ele. Permiti. E Decidi que iria caminhando até a praia. Mentira. Eu não tinha dinheiro. Era por isso que estava indo. Para colocar em prática o desonesto e mau-caráter plano. No caminho, nas ruas, toda a euforia ritualística do ano-novo. Todos pareciam felizes, menos eu, mas é claro que as aparências enganam. Eu estava apenas melancólico. Porque fim de ano é assim mesmo. Lembrava que há algum tempo que não me apaixonava, e isso definitivamente não era bom. Se cicatrizes são boas lembranças, feridas abertas não são boa coisa, são piadas que perdem a graça muito fácil. Somente as paixões me fazem parar de cutucar essas feridas do amor. E eu não tinha nenhuma. Falo de paixões, não de feridas. Mas essa cidade possui atalhos, eu já conheço alguns deles, e antes que essas dúbias reflexões pudessem ameaçar minhas intenções, como num passe de mágica, tenho a minha frente o mar, seus perigos. Vejo-o de cima, e sinto-me altivo. Quantas vezes já o desafiei? Até aqui, venci. Não o temo, ainda que o venere. O mar não é Deus. Vejo também as pessoas. Milhares delas. Dezenas de milhares. Centenas de milhares. Ainda falta algum tempo para a hora certa. Sento-me à beira do mar infinito. Retiro o colar do meu pescoço e entrego em oferenda. Brinco com as ondas que chegam até meus pés. Estou vestido com a graça formidável dos indecisos. Será que devo. Claro que devo. Estou jogando, entenda. É preciso arriscar. E eu necessito de dinheiro. Para ter paz. Acendo um cigarro – ele sempre está, e sempre estará nessas minhas histórias – e percebo alguém se aproximando. Uma pessoa bem-vestida, cores diversas nos tecidos que vestem seu corpo e nas tatuagens que vestem sua pele. Ela me pede um cigarro. Acende. Com toda a sensualidade com que um cigarro merece ser aceso, nenhum gesto desperdiçado, mãos, boca, olhos, até mesmo os cabelos conspirando para uma fotografia perfeita da beleza esfumaçada de um fumante. “O mar não se acalma, mesmo à noite”. Pronuncia essas palavras e sai. Fumo meu cigarro; quase disse que essa agitação do mar é apenas na superfície, talvez ele tente nos intimidar para não penetrarmos nele, mas sob essas ondas está uma paz inigualável e é para lá que quero ir quando morrer. São quase meia-noite. Quando chegar a hora, fogos de artifício agitarão o céu, e todas essas pessoas que vieram de longe para vê-los, estarão com seus olhos vidrados no céu, e bolsas e carteiras estarão à mercê de mãos habilidosas. E eu as tenho. Ela dizia que eu tinha mãos habilidosas. Mas agora que minhas mãos já não servem para moldá-la em prazer, como quem toca a argila molhada, deixo para utilizá-las em outros movimentos sutis, como bater bolsos alheios. Os fogos estouram na grande noite do avô ancestral, eu me movo como um sussurro por entre os distraídos, levando o que consigo. Mas havia alguém que não olhava o céu. Alguém entediado. Detenho-me ante essa figura. Estou olhando fixo em seus olhos, a desafio como desafio o mar. Sou beijado, sinto o gosto do cigarro que presenteei em seus lábios.

É manhã, volto para minha casa com tudo aquilo que precisava para minha paz: Dinheiro, promessas e um coração deixado na areia da praia.

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...