quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Para o Ano Novo


Precisava de algum dinheiro para ter paz. Garantir-me o café, os cigarros, as cervejas e as entradas para o cinema nos dias que viriam. Foi com isso em mente que me preparei para a virada do ano. Minha camisa azul displicentemente abotoada sobre meu corpo, a calça branca, colar no pescoço, um digno filho de Iemanjá, parti para a praia naquele dia 31. Eu fui para a praia porque precisava de algum dinheiro para ter paz. Para enviar as cartas que escrevi com tanto esforço e sinceridade sobre-humana. A garrafa de vinho pela metade foi enfim esvaziada porque eu não precisava estar sóbrio para o que iria fazer. O vinho é um licor que só pode ser apreciado se você se deixa possuir por ele. Permiti. E Decidi que iria caminhando até a praia. Mentira. Eu não tinha dinheiro. Era por isso que estava indo. Para colocar em prática o desonesto e mau-caráter plano. No caminho, nas ruas, toda a euforia ritualística do ano-novo. Todos pareciam felizes, menos eu, mas é claro que as aparências enganam. Eu estava apenas melancólico. Porque fim de ano é assim mesmo. Lembrava que há algum tempo que não me apaixonava, e isso definitivamente não era bom. Se cicatrizes são boas lembranças, feridas abertas não são boa coisa, são piadas que perdem a graça muito fácil. Somente as paixões me fazem parar de cutucar essas feridas do amor. E eu não tinha nenhuma. Falo de paixões, não de feridas. Mas essa cidade possui atalhos, eu já conheço alguns deles, e antes que essas dúbias reflexões pudessem ameaçar minhas intenções, como num passe de mágica, tenho a minha frente o mar, seus perigos. Vejo-o de cima, e sinto-me altivo. Quantas vezes já o desafiei? Até aqui, venci. Não o temo, ainda que o venere. O mar não é Deus. Vejo também as pessoas. Milhares delas. Dezenas de milhares. Centenas de milhares. Ainda falta algum tempo para a hora certa. Sento-me à beira do mar infinito. Retiro o colar do meu pescoço e entrego em oferenda. Brinco com as ondas que chegam até meus pés. Estou vestido com a graça formidável dos indecisos. Será que devo. Claro que devo. Estou jogando, entenda. É preciso arriscar. E eu necessito de dinheiro. Para ter paz. Acendo um cigarro – ele sempre está, e sempre estará nessas minhas histórias – e percebo alguém se aproximando. Uma pessoa bem-vestida, cores diversas nos tecidos que vestem seu corpo e nas tatuagens que vestem sua pele. Ela me pede um cigarro. Acende. Com toda a sensualidade com que um cigarro merece ser aceso, nenhum gesto desperdiçado, mãos, boca, olhos, até mesmo os cabelos conspirando para uma fotografia perfeita da beleza esfumaçada de um fumante. “O mar não se acalma, mesmo à noite”. Pronuncia essas palavras e sai. Fumo meu cigarro; quase disse que essa agitação do mar é apenas na superfície, talvez ele tente nos intimidar para não penetrarmos nele, mas sob essas ondas está uma paz inigualável e é para lá que quero ir quando morrer. São quase meia-noite. Quando chegar a hora, fogos de artifício agitarão o céu, e todas essas pessoas que vieram de longe para vê-los, estarão com seus olhos vidrados no céu, e bolsas e carteiras estarão à mercê de mãos habilidosas. E eu as tenho. Ela dizia que eu tinha mãos habilidosas. Mas agora que minhas mãos já não servem para moldá-la em prazer, como quem toca a argila molhada, deixo para utilizá-las em outros movimentos sutis, como bater bolsos alheios. Os fogos estouram na grande noite do avô ancestral, eu me movo como um sussurro por entre os distraídos, levando o que consigo. Mas havia alguém que não olhava o céu. Alguém entediado. Detenho-me ante essa figura. Estou olhando fixo em seus olhos, a desafio como desafio o mar. Sou beijado, sinto o gosto do cigarro que presenteei em seus lábios.

É manhã, volto para minha casa com tudo aquilo que precisava para minha paz: Dinheiro, promessas e um coração deixado na areia da praia.

Nenhum comentário:

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...