Precisava de algum dinheiro para
ter paz. Garantir-me o café, os cigarros, as cervejas e as entradas para o
cinema nos dias que viriam. Foi com isso em mente que me preparei para a virada
do ano. Minha camisa azul displicentemente abotoada sobre meu corpo, a calça
branca, colar no pescoço, um digno filho de Iemanjá, parti para a praia naquele
dia 31. Eu fui para a praia porque precisava de algum dinheiro para ter paz.
Para enviar as cartas que escrevi com tanto esforço e sinceridade sobre-humana.
A garrafa de vinho pela metade foi enfim esvaziada porque eu não precisava
estar sóbrio para o que iria fazer. O vinho é um licor que só pode ser
apreciado se você se deixa possuir por ele. Permiti. E Decidi que iria
caminhando até a praia. Mentira. Eu não tinha dinheiro. Era por isso que estava
indo. Para colocar em prática o desonesto e mau-caráter plano. No caminho, nas
ruas, toda a euforia ritualística do ano-novo. Todos pareciam felizes, menos eu,
mas é claro que as aparências enganam. Eu estava apenas melancólico. Porque fim
de ano é assim mesmo. Lembrava que há algum tempo que não me apaixonava, e isso
definitivamente não era bom. Se cicatrizes são boas lembranças, feridas abertas
não são boa coisa, são piadas que perdem a graça muito fácil. Somente as
paixões me fazem parar de cutucar essas feridas do amor. E eu não tinha
nenhuma. Falo de paixões, não de feridas. Mas essa cidade possui atalhos, eu já
conheço alguns deles, e antes que essas dúbias reflexões pudessem ameaçar
minhas intenções, como num passe de mágica, tenho a minha frente o mar, seus
perigos. Vejo-o de cima, e sinto-me altivo. Quantas vezes já o desafiei? Até
aqui, venci. Não o temo, ainda que o venere. O mar não é Deus. Vejo também as
pessoas. Milhares delas. Dezenas de milhares. Centenas de milhares. Ainda falta
algum tempo para a hora certa. Sento-me à beira do mar infinito. Retiro o colar
do meu pescoço e entrego em
oferenda. Brinco com as ondas que chegam até meus pés. Estou
vestido com a graça formidável dos indecisos. Será que devo. Claro que devo.
Estou jogando, entenda. É preciso arriscar. E eu necessito de dinheiro. Para
ter paz. Acendo um cigarro – ele sempre está, e sempre estará nessas minhas
histórias – e percebo alguém se aproximando. Uma pessoa bem-vestida, cores
diversas nos tecidos que vestem seu corpo e nas tatuagens que vestem sua pele.
Ela me pede um cigarro. Acende. Com toda a sensualidade com que um cigarro
merece ser aceso, nenhum gesto desperdiçado, mãos, boca, olhos, até mesmo os
cabelos conspirando para uma fotografia perfeita da beleza esfumaçada de um
fumante. “O mar não se acalma, mesmo à noite”. Pronuncia essas palavras e sai.
Fumo meu cigarro; quase disse que essa agitação do mar é apenas na superfície,
talvez ele tente nos intimidar para não penetrarmos nele, mas sob essas ondas
está uma paz inigualável e é para lá que quero ir quando morrer. São quase
meia-noite. Quando chegar a hora, fogos de artifício agitarão o céu, e todas
essas pessoas que vieram de longe para vê-los, estarão com seus olhos vidrados
no céu, e bolsas e carteiras estarão à mercê de mãos habilidosas. E eu as
tenho. Ela dizia que eu tinha mãos habilidosas. Mas agora que minhas mãos já
não servem para moldá-la em prazer, como quem toca a argila molhada, deixo para
utilizá-las em outros movimentos sutis, como bater bolsos alheios. Os fogos
estouram na grande noite do avô ancestral, eu me movo como um sussurro por
entre os distraídos, levando o que consigo. Mas havia alguém que não olhava o
céu. Alguém entediado. Detenho-me ante essa figura. Estou olhando fixo em seus
olhos, a desafio como desafio o mar. Sou beijado, sinto o gosto do cigarro que
presenteei em seus lábios.
É manhã, volto para minha casa
com tudo aquilo que precisava para minha paz: Dinheiro, promessas e um coração
deixado na areia da praia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário