Desjejum
Mal tinha forças para segurar com
a firmeza necessária a faca com que cortaria o pão. Precisei rasgá-lo com os
dedos, o que se mostrou não apenas uma tarefa incomparavelmente mais fácil como
também, de alguma maneira, mais prazerosa. A forma como inseri os polegares na
massa fofa, para então cortar-lhe e retirar o miolo, transformando-a numa casca
vazia que logo levei a boca para consumir, pedaço por pedaço, como se fosse
carne, como se abrisse o estômago de uma pessoa ainda viva para devorar suas
vísceras, tudo isso me sugeria um ritual dotado de violência, que eu me
perguntava de onde teria vindo numa manhã fria e silenciosa como aquela.
Derramei algum café na caneca e me dirigi à janela. Queria contemplar a mata enevoada
até ser capaz de desvendar aquele impulso violento que por um segundo havia
sentido crescer em mim. Meus olhos fixaram a névoa, a paisagem tornou-se um
mero borrão, minha visão penetrou a fina camada branca e era como se eu
entrasse no sonho de alguém. No meu sonho. No sonho que tive a poucas horas. O
último antes de despertar. Numa casa vazia, esta mesma casa em que vivo, as
janelas abertas deixavam a névoa entrar, junto de um frio que parecia quebrar
meus ossos como vidro. O telefone, que não estava ali até então, tocou. Eu
atendi com pressa. Do outro lado da linha, uma voz. E eu sabia que era ela. Por
Deus, de alguma maneira eu sabia que era ela. Foram três palavras, mas quais? O
café esfriou, minha casa esfriou, meu corpo congelou, e era como se eu acabasse
de despertar suando frio de terrores noturnos. Não consigo lembrar o que ela
disse. Sentei na cadeira e comecei a chorar. Desesperado, inconsolável. Eu não
sei o que ela disse, mas fora algo terrível. Sonhos não fazem promessas, mas
mandam seus recados.
Almoço
Eu prepararia um risoto para a
moça que me visitaria ao horário de almoço. Depois da quase revelação que tive
durante a manhã, depois do acesso de ódio e medo inexplicáveis frente à
identificação da voz que me assombra até mesmo em sonho, uma ferida havia sido
aberta em meu dia, eu precisava urgentemente estancar aquela hemorragia antes
que ela se tornasse irreversível. E não seria um simples curativo que faria o
serviço sujo, eu precisava cauterizar aquele corte de maneira que nada sobrasse
dele além de uma queimadura vulgar e que nada dissesse sobre a origem daquele
mal – uma ferida aberta pelas garras de um animal selvagem. Então ela viria,
provavelmente entraria por aquela porta com uma garrafa de vinho nas mãos e seus
beijos incendiários nos lábios. Então, vem, dama invernal, eu dizia enquanto
cozinhava. Vem e me deixe beber esse vinho entre seus seios. Deixe-me sentir o
cheiro em sua nuca por baixo dos seus cabelos. Eu preciso de seu fogo, de sua
raiva santa quando me cavalga, das janelas para o infinito que se abrem em seus
olhos quando goza. Faça-me esquecer da poeira dos dias, da voz em meu sonho,
escandalize os vizinhos, me deixe marcas, prove minha seiva. Não traga seus
pudores ou seu bom mocismo, deixe que blasfêmias saltem de sua boca, que só
você pode me tirar do escuro. Venha com sua fome e suas melhores más intenções
sem exigir muito de mim, que eu apenas posso lhe entregar vontade, minha dor
insana, o fogo do inferno e um risoto ao funghi que, honestamente, não tem
graça nenhuma.
Interlúdio
Depois que C. foi embora, fui
tomado pela mesma sensação de sempre quando ela me deixa: Um estranhamento
causado por não saber exatamente o que eu significava pra ela, nem como ela
conseguia ser tão indiferente em relação a minha vida e a tudo que se passava a
nossa volta. Ela seguia o caminho rumo a seu marido, trabalho e batalhas
judiciais e eu ficava com minha confusão. Ela durava pouco e, como eu esperava,
era invadido a seguir por uma reconfortante paz e esquecimento dos eventos
matinais (e o que seriam dos conceitos de paz e felicidade não fossem os dons
de esquecer e se distrair?). De posse dessa tranquilidade, eu me concentrei em
meu trabalho, enfim. Tranquilidade que era interrompida momentaneamente e em
intervalos regulares quando, sentado à mesa em frente ao computador, sentia
algo como um sopro atrás de uma de minhas orelhas ou até percorrendo meu
pescoço. Depois de acontecer pela quarta vez, eu nem tinha mais o impulso de me
virar para trás na esperança de ver algo, meus pelos apenas arrepiavam, eu dava
um suspiro profundo e seguia trabalhando. Até que no meio da tarde, eu senti
mais uma vez esse sopro, mas não apenas isso. Senti como se duas mãos primeiro
repousassem sobre meus ombros, a seguir apertando-os e lentamente cravando as
unhas em mim, puxando-me para trás enquanto eu fazia força para permanecer como
estava. Eu sabia o que estava acontecendo. Eu estava alucinando, há tempos isso
não acontecia, mas havia voltado, só podia. Recostei-me na cadeira, respirava
fundo e cadenciadamente, como o médico havia me ensinado. Fechei os olhos.
Contei até dez. Neste intervalo, imagens aleatórias passaram por minha cabeça: Um
acidente de carro que não presenciei; meu pai deitado em seu caixão; Um grupo de
esfarrapados contra uma parede, fuzilado por policias que riam como hienas; Uma
tempestade violenta que me impede de sair de casa; Um padre me observando com
um olhar demoníaco; um feto ensanguentado sobre um lençol branco; uma mulher se
afogando e sua face tranquila enquanto ela afunda; o mar, silencioso e
inabalável e por isso mesmo imponente. Minha respiração falhou ante estas
imagens. Abri os olhos e surpreendentemente não apenas minha sala, mas toda a
casa está imersa em escuridão. Não eram sequer quatro da tarde. Corri para a
janela e tudo lá fora era escuridão e silêncio como eu ainda não havia
presenciado. A mata exibia então sua face mais ameaçadora, uma que eu não podia
ver. Eu precisava saber que horas eram. Quanto tempo permaneci com os olhos fechados?
A tela do computador estava apagada, apenas o mesmo tom escuro lá de fora. Suas
luzes em LED, no entanto, permaneciam acesas. Corri para o banheiro, a esta
altura com a boca seca e o coração disparado, tomei água da torneira e depois
lavei meu rosto com ela. Eu precisava voltar a mim. Minhas pupilas estavam
dilatadas. De repente, um grito estridente de uma mulher cortou o silêncio como
uma faca aquecida cortando uma língua humana. Era só uma voz, mas eram os
gritos mais altos que já ouvira. Quando consegui escapar da paralisia inicial,
antes que pudesse pensar em correr, um estrondo pesado contra a parede me
paralisou novamente, junto ao som de vidro partido enquanto os gritos cessaram.
A esta altura meu estômago se contorcia de fome e de pavor. Sim, fome. Não
havia almoçado – não houve espaço para isso naquela orgia de tesão,
esquecimento e indiferença – ou comido qualquer outra coisa além daqueles
pedaços de pão pela manhã. Eu me sentia fraco e tonto. Corri até a sala, vi meu
computador destruído ao chão, em meio ao vidro da mesa espatifado. Caí de
joelhos, cacos de vidro penetraram minha pele e a última coisa que vi antes de
desmaiar foi o vulto de uma mulher ao lado da porta de entrada.
Jantar
Quando acordei, vestia roupas que
não eram minhas. Eu havia dormido ou só cochilado, um leve desmaio? Porque a
vida, quando dormimos demasiado, passa, e a despeito de nossa vontade, nos
enfia em roupas que não nos cabe mais, faz com que nos sintamos desconfortáveis
até mesmo no lugar que outrora chamamos lar, trocando os móveis de lugar,
enfeitando as paredes com desenhos estranhos e runas antigas, e aí sabemos que
não somos mais os mesmos, que aquelas novas roupas estão ali para ficar e somos
nós que precisamos nos ajustar a elas, pois não há nesse mundo todo um só
alfaiate hábil o suficiente para costurar os sonhos que pouco a pouco deixamos
para trás. E havia sangue nestas roupas. Pelo chão, havia estilhaços de muito
mais coisas que um computador e minha mesa. Pedaços do teto, livros rasgados e
restos de comida se misturavam com o pó acumulado e fotos que se espalhavam
pela cerâmica fria. As fotos eram de momentos diferentes da minha vida, de
tantas pessoas que passaram por ela... quando peguei elas em minhas mãos, notei
que nas fotografias o rosto de todas as pessoas estavam riscados. Meu estado
era de completa confusão mental. Quem havia feito aquilo? Quem esteve ali e me
deixou daquela forma? Quem era ela, que eu vi a segundos de perder a
consciência? Súbito, a minha mente, uma recordação. Uma voz. A voz que me
despertou, era dela. Enquanto eu jazia entre vidros e poeira, sua voz sussurrou
em meu ouvido três palavras que me despertaram. Era a mesma voz do telefonema.
“Sua hora chegou”, ela dizia. As palavras que me haviam aterrorizado pela
manhã, não surtiram efeito algum desta vez. Eu me sentia em paz. Era a
convicção de que não havia mais nada a ser feito, que todas as criaturas sob o
sol encontram o mesmo fim e não é dada a elas o momento de escolher este
momento. É possível alguém estar feliz sabendo que este momento está tão
próximo? Eu não sei. Minha janta, que eu não lembro de ter comido, espalhada
pelo chão, irreconhecível vômito de toda uma vida, angústia misturada a pedaços
de verduras e legumes. Ergui-me cambaleante. Dirigi-me ao quarto e deitei com
placidez. Fechei os olhos e tratei de imaginar como se pareceria esta força
irrefreável que nos traz aqui para nos arrancar a qualquer hora. Dormi com o
sentimento de que o verdadeiro amor é capaz de encontrá-lo no fim. Tudo que eu
deveria fazer era esperar.
Rodrigo R. Vitorino 10 - 06 - 2014
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