terça-feira, 10 de junho de 2014

O dia em que as horas param



Desjejum

Mal tinha forças para segurar com a firmeza necessária a faca com que cortaria o pão. Precisei rasgá-lo com os dedos, o que se mostrou não apenas uma tarefa incomparavelmente mais fácil como também, de alguma maneira, mais prazerosa. A forma como inseri os polegares na massa fofa, para então cortar-lhe e retirar o miolo, transformando-a numa casca vazia que logo levei a boca para consumir, pedaço por pedaço, como se fosse carne, como se abrisse o estômago de uma pessoa ainda viva para devorar suas vísceras, tudo isso me sugeria um ritual dotado de violência, que eu me perguntava de onde teria vindo numa manhã fria e silenciosa como aquela. Derramei algum café na caneca e me dirigi à janela. Queria contemplar a mata enevoada até ser capaz de desvendar aquele impulso violento que por um segundo havia sentido crescer em mim. Meus olhos fixaram a névoa, a paisagem tornou-se um mero borrão, minha visão penetrou a fina camada branca e era como se eu entrasse no sonho de alguém. No meu sonho. No sonho que tive a poucas horas. O último antes de despertar. Numa casa vazia, esta mesma casa em que vivo, as janelas abertas deixavam a névoa entrar, junto de um frio que parecia quebrar meus ossos como vidro. O telefone, que não estava ali até então, tocou. Eu atendi com pressa. Do outro lado da linha, uma voz. E eu sabia que era ela. Por Deus, de alguma maneira eu sabia que era ela. Foram três palavras, mas quais? O café esfriou, minha casa esfriou, meu corpo congelou, e era como se eu acabasse de despertar suando frio de terrores noturnos. Não consigo lembrar o que ela disse. Sentei na cadeira e comecei a chorar. Desesperado, inconsolável. Eu não sei o que ela disse, mas fora algo terrível. Sonhos não fazem promessas, mas mandam seus recados.


Almoço

Eu prepararia um risoto para a moça que me visitaria ao horário de almoço. Depois da quase revelação que tive durante a manhã, depois do acesso de ódio e medo inexplicáveis frente à identificação da voz que me assombra até mesmo em sonho, uma ferida havia sido aberta em meu dia, eu precisava urgentemente estancar aquela hemorragia antes que ela se tornasse irreversível. E não seria um simples curativo que faria o serviço sujo, eu precisava cauterizar aquele corte de maneira que nada sobrasse dele além de uma queimadura vulgar e que nada dissesse sobre a origem daquele mal – uma ferida aberta pelas garras de um animal selvagem. Então ela viria, provavelmente entraria por aquela porta com uma garrafa de vinho nas mãos e seus beijos incendiários nos lábios. Então, vem, dama invernal, eu dizia enquanto cozinhava. Vem e me deixe beber esse vinho entre seus seios. Deixe-me sentir o cheiro em sua nuca por baixo dos seus cabelos. Eu preciso de seu fogo, de sua raiva santa quando me cavalga, das janelas para o infinito que se abrem em seus olhos quando goza. Faça-me esquecer da poeira dos dias, da voz em meu sonho, escandalize os vizinhos, me deixe marcas, prove minha seiva. Não traga seus pudores ou seu bom mocismo, deixe que blasfêmias saltem de sua boca, que só você pode me tirar do escuro. Venha com sua fome e suas melhores más intenções sem exigir muito de mim, que eu apenas posso lhe entregar vontade, minha dor insana, o fogo do inferno e um risoto ao funghi que, honestamente, não tem graça nenhuma.


Interlúdio

Depois que C. foi embora, fui tomado pela mesma sensação de sempre quando ela me deixa: Um estranhamento causado por não saber exatamente o que eu significava pra ela, nem como ela conseguia ser tão indiferente em relação a minha vida e a tudo que se passava a nossa volta. Ela seguia o caminho rumo a seu marido, trabalho e batalhas judiciais e eu ficava com minha confusão. Ela durava pouco e, como eu esperava, era invadido a seguir por uma reconfortante paz e esquecimento dos eventos matinais (e o que seriam dos conceitos de paz e felicidade não fossem os dons de esquecer e se distrair?). De posse dessa tranquilidade, eu me concentrei em meu trabalho, enfim. Tranquilidade que era interrompida momentaneamente e em intervalos regulares quando, sentado à mesa em frente ao computador, sentia algo como um sopro atrás de uma de minhas orelhas ou até percorrendo meu pescoço. Depois de acontecer pela quarta vez, eu nem tinha mais o impulso de me virar para trás na esperança de ver algo, meus pelos apenas arrepiavam, eu dava um suspiro profundo e seguia trabalhando. Até que no meio da tarde, eu senti mais uma vez esse sopro, mas não apenas isso. Senti como se duas mãos primeiro repousassem sobre meus ombros, a seguir apertando-os e lentamente cravando as unhas em mim, puxando-me para trás enquanto eu fazia força para permanecer como estava. Eu sabia o que estava acontecendo. Eu estava alucinando, há tempos isso não acontecia, mas havia voltado, só podia. Recostei-me na cadeira, respirava fundo e cadenciadamente, como o médico havia me ensinado. Fechei os olhos. Contei até dez. Neste intervalo, imagens aleatórias passaram por minha cabeça: Um acidente de carro que não presenciei; meu pai deitado em seu caixão; Um grupo de esfarrapados contra uma parede, fuzilado por policias que riam como hienas; Uma tempestade violenta que me impede de sair de casa; Um padre me observando com um olhar demoníaco; um feto ensanguentado sobre um lençol branco; uma mulher se afogando e sua face tranquila enquanto ela afunda; o mar, silencioso e inabalável e por isso mesmo imponente. Minha respiração falhou ante estas imagens. Abri os olhos e surpreendentemente não apenas minha sala, mas toda a casa está imersa em escuridão. Não eram sequer quatro da tarde. Corri para a janela e tudo lá fora era escuridão e silêncio como eu ainda não havia presenciado. A mata exibia então sua face mais ameaçadora, uma que eu não podia ver. Eu precisava saber que horas eram. Quanto tempo permaneci com os olhos fechados? A tela do computador estava apagada, apenas o mesmo tom escuro lá de fora. Suas luzes em LED, no entanto, permaneciam acesas. Corri para o banheiro, a esta altura com a boca seca e o coração disparado, tomei água da torneira e depois lavei meu rosto com ela. Eu precisava voltar a mim. Minhas pupilas estavam dilatadas. De repente, um grito estridente de uma mulher cortou o silêncio como uma faca aquecida cortando uma língua humana. Era só uma voz, mas eram os gritos mais altos que já ouvira. Quando consegui escapar da paralisia inicial, antes que pudesse pensar em correr, um estrondo pesado contra a parede me paralisou novamente, junto ao som de vidro partido enquanto os gritos cessaram. A esta altura meu estômago se contorcia de fome e de pavor. Sim, fome. Não havia almoçado – não houve espaço para isso naquela orgia de tesão, esquecimento e indiferença – ou comido qualquer outra coisa além daqueles pedaços de pão pela manhã. Eu me sentia fraco e tonto. Corri até a sala, vi meu computador destruído ao chão, em meio ao vidro da mesa espatifado. Caí de joelhos, cacos de vidro penetraram minha pele e a última coisa que vi antes de desmaiar foi o vulto de uma mulher ao lado da porta de entrada.


Jantar


Quando acordei, vestia roupas que não eram minhas. Eu havia dormido ou só cochilado, um leve desmaio? Porque a vida, quando dormimos demasiado, passa, e a despeito de nossa vontade, nos enfia em roupas que não nos cabe mais, faz com que nos sintamos desconfortáveis até mesmo no lugar que outrora chamamos lar, trocando os móveis de lugar, enfeitando as paredes com desenhos estranhos e runas antigas, e aí sabemos que não somos mais os mesmos, que aquelas novas roupas estão ali para ficar e somos nós que precisamos nos ajustar a elas, pois não há nesse mundo todo um só alfaiate hábil o suficiente para costurar os sonhos que pouco a pouco deixamos para trás. E havia sangue nestas roupas. Pelo chão, havia estilhaços de muito mais coisas que um computador e minha mesa. Pedaços do teto, livros rasgados e restos de comida se misturavam com o pó acumulado e fotos que se espalhavam pela cerâmica fria. As fotos eram de momentos diferentes da minha vida, de tantas pessoas que passaram por ela... quando peguei elas em minhas mãos, notei que nas fotografias o rosto de todas as pessoas estavam riscados. Meu estado era de completa confusão mental. Quem havia feito aquilo? Quem esteve ali e me deixou daquela forma? Quem era ela, que eu vi a segundos de perder a consciência? Súbito, a minha mente, uma recordação. Uma voz. A voz que me despertou, era dela. Enquanto eu jazia entre vidros e poeira, sua voz sussurrou em meu ouvido três palavras que me despertaram. Era a mesma voz do telefonema. “Sua hora chegou”, ela dizia. As palavras que me haviam aterrorizado pela manhã, não surtiram efeito algum desta vez. Eu me sentia em paz. Era a convicção de que não havia mais nada a ser feito, que todas as criaturas sob o sol encontram o mesmo fim e não é dada a elas o momento de escolher este momento. É possível alguém estar feliz sabendo que este momento está tão próximo? Eu não sei. Minha janta, que eu não lembro de ter comido, espalhada pelo chão, irreconhecível vômito de toda uma vida, angústia misturada a pedaços de verduras e legumes. Ergui-me cambaleante. Dirigi-me ao quarto e deitei com placidez. Fechei os olhos e tratei de imaginar como se pareceria esta força irrefreável que nos traz aqui para nos arrancar a qualquer hora. Dormi com o sentimento de que o verdadeiro amor é capaz de encontrá-lo no fim. Tudo que eu deveria fazer era esperar.


Rodrigo R. Vitorino 10 - 06 - 2014

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