Minha querida amiga,
Diz-nos o bom senso que a coisas da terra pouca existência têm, e que a verdadeira realidade está apenas nos sonhos. Para digerir a felicidade natural, assim como a artificial, é preciso primeiro ter a coragem de a engolir, e os que talvez merecessem a felicidade são justamente aqueles a quem a ventura, tal como a concebem os mortais, sempre fez um efeito de um vomitório.
A espíritos néscios parecerá singular, e mesmo impertinente, que um quadro das volúpias artificiais seja dedicado a uma mulher, a mais comum fonte das mais naturais volúpias. Todavia, é evidente que tal como o mundo natural penetra no espiritual, lhe serve de alimento, e concorre assim para operar esse amálgama indefínível a que chamamos a nossa individualidade, a mulher é o ser que projeta a maior sombra e a maior luz nos nossos sonhos. A mulher é fatalmente sugestiva; vive de uma outra vida além da sua própria; vive espiritualmente nas imaginações que frequenta e fecunda.
Aliás, importa pouco que a razão desta dedicatória seja compreendida. será mesmo necessário, para contentamento do autor, que um livro qualquer seja compreendido, exceto por aquele ou aquela para quem foi composto? Dizendo enfim tudo, é indispensável que seja escrito para alguém? Por mim, tenho tão pouco gosto pelo mundo vivo, que, como essas mulheres sensíveis e ociosas que enviam pelo correio, diz-se, as suas confidências a amigos imaginários, de bom grado escreveria apenas para os mortos.
Mas não é a uma morta que dedico este pequeno livro; dedico-o a uma mulher que, embora doente, continua ativa e viva em mim, e volta agora o seu olhar para o Céu, lugar de todas as transfigrações. Porque, tal como de uma droga perigosa, o ser humano goza do privilégio de poder tirar prazeres novos e sutis mesmo da dor, da catástrofe e da fatalidade.
Verás neste quadro um passeante sombrio e solitário, mergulhado na onda movediça das multidões, e enviando o seu coração e o seu pensamento a uma Electra distante que lhe limpava ainda não ha muito a fronte banhada em suor e lhe refrescava os lábios pergaminhados pela febre; e adivinharás a gratidão de um outro Orestes cujos pesadelos tantas vezes vigiastes, e a quem dissipavas, com mão leve e maternal, o sono horrível.
C.B.
Dedicatória de Charles Baudelaire do livro "Paraísos Artificiais", a J.G.F, soberana de sua dor e devaneio.
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