segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Caras como eu não deveriam viajar de avião


Quando o avião acelerou na pista, se preparando para a decolagem, eu olhei pela janela e me vi do lado de fora, menino, correndo ao lado dele. O avião arremetendo contra as nuvens me lembrou de mim quando criança, tomando distância da lagoa lá embaixo, correndo, correndo, mais rápido e mais rápido, ganhando velocidade para, a um passo do fim, saltar buscando o céu e finalmente caindo dentro d’água não sem uma pontada de frustração. E desta vez, ao invés de despencar, eu subi. E subi, cada vez mais. E uma vez acima das nuvens, foi inevitável o deslumbramento, a fascinação diante do improvável, mas regada a certa melancolia vinda não sei de onde.  Tudo era tão claro e tão cheio de paz, que contrastava com essa inquietação de espírito que não me abandonava mesmo ali. Eu desejava aquele silêncio do mundo lá fora, a paz do infinito. Era como se, aprisionado dentro de uma gaiola de ferro, eu houvesse sido lançado para fora do espaço e do tempo, tentando cruzar uma barreira há muito esquecida por quem já se habituou a voar, claro, sem asas. Pela primeira vez desempenhava uma viagem e a estrada não estava lá, arrancada de sua nobreza e santidade, não havia nada nas nuvens que lembrassem as rodovias que ligam cidades e corações como artérias de concreto e poeira, e lentamente as nuvens iam assumindo para mim um tom enegrecido, um tipo de deserto particular, um inferno próximo ao céu, uma cor azul de um vazio anômalo, entediante, sinistro até. O céu não te permite visões. Eu estava próximo de meu destino, sem sentir que havia realmente deixado algum lugar, e mesmo quando revolvia meus pensamentos a algo menos terrível, alguma turbulência me trazia de volta do meu caos interior e eu encarava a paz infinita lá de fora, o avião sacudia e sacudia, e eu murmurava para que apenas eu pudesse ouvir: “caia de uma vez, caia, apenas dessa vez, caia, maldição”. Ele não caía, e do meu lado via a senhora olhando para mim com um misto de espanto e reprovação no olhar. Pelo visto eu não murmurei baixo o suficiente. Eu ri, meu primeiro sorriso desde a decolagem. Caras como eu não deveriam viajar de avião. Senti uma saudade enorme do garoto que não decolava e caía n’água, mas ri porque sabia que lá embaixo haveria uma estrada pra mim como há para todo mundo.

Nenhum comentário:

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...