sábado, 31 de maio de 2014
A Vida é Sub-reptícia
"Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada,.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia."
(Trecho de "Passagem do Ano", de Carlos Drummond de Andrade)
sexta-feira, 30 de maio de 2014
A Case of You
"You're in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet
Oh, darling, I could drink a case of you
And still I'd be on my feet
Oh, I'd still be on my feet."
Joni Mitchell - Self-Portrait
quinta-feira, 29 de maio de 2014
Aquela vida inteira sequelada
(Fernanda D'Umbra)
Por mim, escreveria até a morte (farei isso)
iria até sua casa e me deitaria no meio fio
eu ia esperar que você saísse
jornal na mão, cabelos limpos
e uma cara safada, rendida
marcada por dois olhos
locados por uma construtora
que nos demitiu no primeiro dia
e nós, (sempre bem vestidos) não sabemos
o que fazer com aquele carro, aquela casa
aquela vida inteira sequelada
aquela musica que toca no rádio
e a gente dança (sem entender nada)
Fernanda publica no Sem Gelo - Um Blog Puro
Por mim, escreveria até a morte (farei isso)
iria até sua casa e me deitaria no meio fio
eu ia esperar que você saísse
jornal na mão, cabelos limpos
e uma cara safada, rendida
marcada por dois olhos
locados por uma construtora
que nos demitiu no primeiro dia
e nós, (sempre bem vestidos) não sabemos
o que fazer com aquele carro, aquela casa
aquela vida inteira sequelada
aquela musica que toca no rádio
e a gente dança (sem entender nada)
Fernanda publica no Sem Gelo - Um Blog Puro
terça-feira, 27 de maio de 2014
Dry Martini
Então ela disse que sexo sem amor era como "pizza sem queijo". Aquilo me deixou confuso. Ela disse, claro que pode acontecer, pode até ser bom, mas nunca será tão bom como se tivesse queijo. Os sabores são incomparáveis, e com amor é insuperavelmente melhor.
Repliquei que aquela não era uma boa metáfora pra mim, eu que não concebo pizza sem queijo. Eu diria que sexo sem amor está mais para um dry martini sem a azeitona. Sendo que o amor é a azeitona. Ou seja, a azeitona é legal, é mais bacana mesmo com ela, mas não é indispensável para um bom martini. O importante mesmo é que o Gim não seja vagabundo. E com vodka nem pensar.
segunda-feira, 26 de maio de 2014
"Consegui viver até hoje porque desde cedo adestrei-me a me perturbar, a me criar tormentos, a tentar me destruir: confiando sempre nas minhas grandes reservas de eletricidade. Renasço cada dia dos meus próprios crimes. Viver é refazer o erro".
- Murilo Mendes
Extraído de Sob o sol sobre a sombra
Amanhã cedo sairei pra cometer meu crime mais perverso. Eu e minha sede infinita, eu e me olhos de meia-noite, eu e minha ânsia. Minha confusão mental no esteio de seus passos. Levo comigo a santidade dos assassinos e a serenidade dos internos de um asilo psiquiátrico. Dirão que fui avesso à sociedade. Psicopata, dirão. Pederasta, dirão. Que digam. Que sussurrem meu nome a seus filhos para inspirar-lhes medo quando não quiserem que saiam à noite. Blasfemo como só os anjos podem fazer.
E assim transformo
um desejo por amor
em crime
ofensa
uma obra
de arte.
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Spleen
Eu sou como o rei de um país chuvoso,
Rico, mas impotente, jovem embora idoso,
Que, dos preceptores desprezando os rituais
Enfada-se com seus cães e com outros animais.
Nada o diverte, nem a caça, nem o falcão,
Nem o seu povo morrendo diante do balcão.
Do bufão favorito nem mesmo a grotesca balada
Distrai desse doente cruel a fronte enrugada;
Todo flor-de-lis, é um mausoléu o seu leito,
E as aias para quem todo príncipe é perfeito,
Não sabem mais que roupa sensual vestir
Para fazer esse jovem esqueleto sorrir.
O sábio que lhe faz ouro não tem conseguido
Extirpar-lhe do ser o elemento corrompido;
Nem os banhos de sangue ensinados pelos romanos,
E no declínio sempre lembrado pelos soberanos,
Conseguiram reaquecer essa carcaça exangue e embotada
Onde em vez de sangue corre do Letes a água
esverdeada.
(Charles Baudelaire)
terça-feira, 20 de maio de 2014
Despertar de Ícaro, Lucílio de Albuquerque
De Ícaro eu guardo o cheiro de cera derretida.
A visão de suas asas destruídas
O som de ossos se partindo
Seu corpo contra as rochas
Ícaro, que desobedeceu seu pai
Que contrariou sua natureza.
A quem não bastava apenas escapar
Que aproximou-se do sol quando sabia que não poderia durar
Talvez eu também tenha desejado
Mais do que poderia ter
E aquecido meu corpo com um calor que queimaria minhas asas
Sim, eu tive meus dias de Ícaro
Desejei ver a luz do sol perto demais
E agora a queda é só questão de tempo.
segunda-feira, 19 de maio de 2014
sábado, 17 de maio de 2014
By the Morning
Artista: Paul Kelley
Os olhos do sol entram pela janela e
encontram os teus,
entreabertos numa manhã sem planos.
O sol, em seus sonhos antediluvianos,
Jamais havia sido tão feliz.
Trípitico
(Amélia Pais)
I
desamada
desarmada
vem o vento
vai-se o tempo
nem o tempo
nem o vento
dá o tempo
de sarar
de repente
vem o dia
chega a hora
borda a fora
a acostar
volta atrás ó cavaleiro
volta atrás se quer's teu bem
tua amada
tua armada
com o tempo
desarmada
traz também
II
o que se sente
entre o que se pensa e diz
o que se pensa
entre o que se sente e cala
o que se cala
entre o sentir e o ser
o que se diz
entre o que se ama e sonha
nós
no mais fundo de nós
nós perdidos
nós vazios
nós à margem.
III
Quem vai responder
o que não tem resposta
Quem vai falar
o que não tem palavra
Quem vai te achar
o que em nós esquece
Quem vai roer
o que em nós sufoca
Vem noite ou pranto ou dia ou vento
Quem quer que sejas que seja o novo
Abrindo o canto na carne clara
segunda-feira, 12 de maio de 2014
O Abismo que Cavaste com Teus Pés
"A Lonely Roman", Pavel Svedomsky
Porque o céu hoje cedo, silenciou, depois de uma madrugada
de trovões e muita água;
Porque todos os seres noturnos cessaram seus lamentos;
Porque perdeste tua medalha da sorte em meio à multidão
indiferente;
Porque nas águas do Atlântico aprendeste que o Mar é
insuperável;
Porque gemendo descobriste que amar é um verbo intransitivo;
E foi também gemendo que descobrira que há sempre um novo
amor;
Porque caminhando a estrada sempre parece mais longa,
enquanto
de tua cama parece a ti que não há estrada alguma;
Porque com Cioran percebeste que todos os seres são tristes;
E com Shakespeare repetiste que o Inferno está vazio e todos
os demônios estão aqui;
Porque desperdiçaste teus melhores dias crendo estar
enfermo;
Porque conheceste cedo o mistério divino e rechaçaste-o;
Porque não te apetece a cólera ou a fé;
Porque és tu, jovem Narciso, teu único algoz e enfermeiro;
Porque as pedras rolam em teu peito;
Porque tens consciência daquilo que deveríamos ser
ignorantes;
Por tudo isso, deves deixar de contemplar a este abismo
interior,
E reparar na inefável sutileza da canção que apenas tu és
capaz de ouvir.
Agora dorme, pois que essa tristeza é passageira.
domingo, 11 de maio de 2014
Wallace Stevens
Song
There are great things doing
In the world,
Little rabbit.
There is a damsel,
Sweeter than the sound of the willow,
Dearer than the shallow water
Flowing over pebbles.
Of a sunday,
She wears a long coat,
with twelve buttons on it.
Tell that to your mother.
Canção
Há coisas esplêndidas acontecendo
No mundo,
Coelhinho.
Há uma donzela,
Mais doce que o som do salgueiro,
Mais suave que água rasa,
Correndo sobre seixos.
No domingo,
Ela veste um casaco longo,
Ela veste um casaco longo,
Com doze botões.
Conta isso a tua mãe.
sexta-feira, 9 de maio de 2014
O raciocínio é reto e tenta seguir
a precisão cínica das formas geométricas
em seu percurso, é atingido no peito
pela insensatez curvilínea e imprevisível das paixões.
A ferida, quase fatal, não mata, mas também
não torna mais forte.
O Amor é um predador.
E a Razão, sua presa predileta.
Há quem o coloque num pedestal, e
não são poucos. Não o trate desta maneira.
O seu amor é o que há de melhor
e pior em você
tal qual seu ódio, e seu raciocínio
não pode te salvar de nenhum dos dois.
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