quinta-feira, 23 de junho de 2011

"Então me vens e me chega e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque assim que és..."


Caio Fernando Abreu

Mulheres e cigarros

Anna Karina


Marlene Dietrich - o anjo azul


Charlotte Gainsbourg

Jeanne Moreau

Uma Thurman, como Mia Wallace

E inúmeras xícaras de café. E a mesma canção.

memórias (falsas)

Diz-se da memória que se trata de um estoque de experiência que reservamos e ao qual recorremos para enfrentar situações análogas, identificar padrões e estar preparados para contingências futuras, seja para corresponder ou frustrar expectativas de outros. De qualquer maneira, é uma forma de organizar e entender as coisas. Entretanto, pouco se sabe sobre o funcionamento deste mecanismo de armazenamento de experiências passadas, esta caixa preta; apenas que – óbvio – não retemos aquilo que não vivemos e que ninguém vive se só vive no presente.
Naquele princípio de noite, agíamos como se nada houvesse acontecido na manhã anterior. Nossos passos graves e nosso silêncio felino estavam em ressonância, mas o que havia acontecido parecia tão fora de todos os esquemas mentais que criáramos com a intenção de nos precaver do mundo, que daquela experiência só guardamos sensações sem ter aprendido coisa alguma com elas, como dois amadores à véspera de um grande acontecimento. Temíamos voltar àquilo que, independente de ter ocorrido há pouco mais de vinte e quatro horas, parecia não existir em nossa memória, enquanto os sentidos alertavam que algo estava fora do lugar, como um vulto que vemos com o canto de um dos olhos, ou a sensação de estar sendo perseguido ou um sonho do qual não nos lembramos, mas que deixa um leve incômodo. Quase falei para você: “pensei muito nas últimas palavras que você disse”, mas algo me impelia a pensar que essas poucas palavras poderiam fazer explodir o universo inteiro, ou talvez retirar a solene lua de sua órbita. Então, apenas prosseguimos. Seu olhar, ou melhor, os poucos olhares que você me lançou, me levaram a crer que dentro de ti se passava algo semelhante, certo temor de cometer um pecado tão grande, tão grande quanto derramar sal nas chagas de Cristo. Então, prosseguimos. Uma velha cruza nosso caminho e em sua sabedoria ela nos observa, certamente imaginando que fazemos aquilo que todos fazem com nossa idade: perdendo tempo pensando em como não se arrepender de alguma coisa. Ela sorri então afável, sabe que isso é da juventude e ela mesma deve ter desperdiçado muito tempo desse mesmo jeito. Uma chuva fina começa a cair, seguimos caminhando tentando não pensar no assunto. Em frente a uma loja de calçados, você pára e observa um sapato idêntico ao que você perdeu naquela manhã, e que eu sabia muito bem como. E me diz que perdeu um sapato como aquele, com um olhar triste. “Como você o perdeu?”. A pergunta é a deixa, e você, preparada, animada com a possibilidade aberta de eliminar de uma vez aquele desconforto causado por um corpo estranho no campo de suas memórias, responde: “quando desci do trem, chegando de N****” e me conta toda uma estória sobre um lugar, uma família, um mar infinito e um trabalho, todos hipotéticos, improváveis, mas eu acredito plenamente, enquanto você fala a própria verdade se delineia no contorno de seus lábios e eu silenciosamente rezo para que você não deixe de falar, não hesitaria um segundo entre escolher entre sua boca e a verdade; e se você esteve onde disse que esteve, então nunca estivemos juntos, naquela manhã nublada, e estas sensações não passam de devaneios. E criamos, enfim, uma memória, juntos lapidamos uma experiência para nos livrar de um sentimento e assim continuar nossos projetos paralelos, sem precisar esperar pelo próximo abalo sísmico, ou pelo próximo trem, que sabemos que inevitavelmente virá, e do qual nos esqueceremos, olvidados em nossas memórias arquitetadas.

domingo, 19 de junho de 2011

Oração para a chegada do inverno

Que você venha com teus poderes de assombro e conforto;
Que minha casa esteja fechada para os corvos do paraíso e aberta para suas noites de frio;
Não te temerei, ainda que esteja desabrigado, desamparado e só,
Porque sei que em tuas brisas há mais do que arrepios: Há também calor,
em uma forma estranha e delicada, mas ainda assim, para as almas sensíveis, calor;
Dias e mais dias ainda nos separam,
Mas te espero com a ansiedade e angústia dos amantes apartados;
Desde que findo o verão da histeria,
aguardo-te, inverno da temperança e suavidade,
dos abraços demorados e
das noites sem fim,
que começam com beijos insidiosos
e se prolongam noite adentro em sonhos com paisagens chuvosas.

Ao inverno, que ele venha
carregando em seus ventos as melodias das ninfas.

sábado, 18 de junho de 2011

Nos Salões do Sonho

Mas vocês não repararam, não?!
Nos salões do sonho nunca há espelhos...
Por quê?
Será porque somos tão nós mesmos
Que dispensamos o vão testemunho dos reflexos?
Ou, então
- e aqui começa um arrepio -
Seremos acaso tão outros?

Tão outros mesmos que não suportaríamos a visão daquilo,
Daquela coisa que nos estivesse olhando fixamente do outro lado,
Se espelhos houvesse!
Ninguém pode saber... Só o diria
Mas nada diz,
Por motivos que só ele conhece,
O misterioso Cenarista dos Sonhos!

Mário Quintana

domingo, 12 de junho de 2011

Gaviões Noturnos














"Nighthawks", Edward Hopper.


Os Gaviões noturnos
Só saem quando sabem que estarão a sós;
juntos, cada um em sua própria solidão
Se encontram num canto solitário da cidade
E beber, até se lembrarem de seus amores perdidos.


                                                                    R.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Walking after you

Foo Fighters:



Uma amiga me fez lembrar dessa música linda. Já paguei muito pau pra essa banda. E ainda sorrio melancolicamente quando escuto essa letra...

* Prometo que até o fim da semana volto a postar textos meus!

sábado, 28 de maio de 2011

O que o médico disse

 Ele disse não parece bom
 ele disse parece mau aliás muito mau
 ele disse eu contei trinta e dois deles em um pulmão antes
 de parar de contar
 eu disse fico feliz não ia querer saber
 que tem mais do que isso lá
 ele disse por acaso você é religioso você se ajoelha
 em bosques na floresta e se permite pedir ajuda
 quando encontra uma cachoeira
 a névoa soprando contra seu rosto seus braços
 você para e pede clareza nesses momentos
 eu disse não mas pretendo começar hoje mesmo
 ele disse sinto muito ele disse
 gostaria de ter outro tipo de notícia para dar
 eu disse Amém e ele disse algo mais
 que eu não entendi e sem saber mais o que fazer
 e sem querer que ele precisasse repetir aquilo
 e que eu realmente precisasse digeri-lo
 apenas olhei para ele
 por um minuto e ele olhou de volta foi então
 que me ergui num salto e apertei a mão daquele homem que
 acabara de me dar
 algo que ninguém no mundo jamais tinha me dado
 talvez eu tenha até agradecido por força do hábito.

 Raymond Carver

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Bukowski, again.

" Vemos isso tarde demais
Depois que o pau é engolido
O coração vai atrás"

Ou vice-versa.

Um outro jeito de dizer que "o amor é sexualmente transmissível" (Marçal Aquino).

terça-feira, 17 de maio de 2011

Último Copo de Tristeza





Sim, eu vi estrelas despencarem como se fossem lágrimas do céu. E eu jamais diria para ti que tive uma visão tão triste se você aparecesse de repente com seu sorriso de noite fria, seu olhar lânguido de gata. Enrolados em meus dedos, teus cabelos contariam uma estória. Vaga, como a lua. Sem sentido e sublime. Com algum brilho. Beijaria teu pescoço e guardaria pra mim essa visão triste, e mais todos os pesadelos que me assaltavam quando não conhecia esse frescor sublime de seu abraço. Pra não te assustar. Odiaria ver você fugir por aquela porta com medo do que quer que fosse que viste em meus olhos. Sou como a heroína de histórias de terror que só no fim descobre que ela é a única que pode destruir o fantasma que persegue ela e seus amigos, como um sobrevivente de um massacre que se escondeu e só muito tempo depois do ocorrido sai de seu quarto pra ver o que restou. E o que sobra é esse misto de solidão e alívio, e um imperativo de recomeço que ronda cada gesto, cada palavra que sai de minha boca. É essa sensação e o prazer da sua presença que, se não me sustentam, me permitem encarar mais um dia de sol com um sorriso incerto nos lábios, de quem não sabe direito o que vai fazer nem como, mas que sabe que vai dar certo só porque não foi tentado antes. E sobre aquelas estrelas cadentes que caíram em chamas no mar, eu devo dizer que delas mantive um retrato em minha memória, e em alguma noite amena te conto com um sussurro ao ouvido. 

domingo, 8 de maio de 2011

A paz que não quero

Algumas vezes eu encontro uma paz que é absurda. E não é uma paz construída, buscada, que vem surgindo aos poucos com o correr das horas. É uma paz que explode, transborda, não acalma - fere. E, na verdade, é ela que me encontra, como os olhos de uma mulher a me encarar. Ela recusa bebidas e musicas e companhias, deseja apenas cigarros e silêncio, vazio. Às vezes quase sinto ela arrebentando meu peito como uma bomba. Ela se assemelha a uma pequena certeza de que tudo que havia pra acontecer já passou, que não há mais nada para esperar e que não há motivos nem pra ansiedade nem pra vontade. Ela é como uma mãe velha que diz "é assim mesmo". Eu só conheço essa paz, dos desesperados. E ela é violenta, maligna. Só que eu, que caminho chutando poças d'água quando estou triste, que me arrepio com seu toque, que não sei dedilhar nenhuma bela melodia no violão, eu, preferiria, a esta paz, a insanidade em tua cama.

terça-feira, 26 de abril de 2011

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Ainda vai demorar pra passar


A tristeza ainda vai demorar pra passar. Eu não vou tomar anti-depressivos e nem vou beber até morrer. Só vou beber, porque faria isso de qualquer jeito. As cicatrizes vão demorar pra sumir. Mas eu vou começar fazendo algo. Eu que já não acredito em quase nada. Eu tenho que começar de alguma maneira. E a melhor maneira que descobri é tirando alguns quadros da parede. Parece fácil, mas posso garantir que não é. Ou você já tentou arrancar seu coração e colocar ele em cima do aparelho de tv?


(Mário Bortolotto)

sábado, 16 de abril de 2011

Monólogo; de Luana Vignon

"Quando entendi que essa coisa de literatura era irreversível resolvi experimentar de tudo, Vinícius de Moraes, Henry Miller, Rimbaud, Verlaine, toda a corja. Eu achava que tinha que viver tudo muito, muito rápido e preferencialmente de porre, perder o controle era um tipo de sublimação. Bullshit. (Tenho uma gastrite e uma filha de 9 anos). Enquanto isso você tomava pilequinhos inocentes e passava a mão na bunda da professora de literatura inglesa (eu dava mole pro frentista do posto 24h). Você traduzia Baudelaire (eu dormia em hoteizinhos sujos).  Eu tentava extrair poesia das dezenas de feridas que eu mesma me infligia, mas tudo só serviu para alimentar esse pequenino monstro alojado no meu tórax. Esse traidor".


- Luana Vignon, http://luanavignon.wordpress.com

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um poema

o universo é infinito
como a luz do
primeiro olhar
e a escuridão do
último beijo


(Fernanda Tatagiba)

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Se os anjos escutassem jazz

As trombetas do apocalipse
Soariam como um solo de Miles Davis
E não seriam assim tão ruins,
Sons dissonantes, notas perfuro-cortantes,
“bye, bye, blackbird” em pleno fim do mundo.
Anjos são seres estranhos
Eles estão por aí o tempo todo;
Aparecendo pra Drummond,
Anunciando o filho da virgem Maria,
Apaixonando-se por trapezistas alemãs;
Mas acredito que nunca escutaram jazz.
Jazz é pra quem tem alma.
Ainda que seu choro seja um piano,
Suas asas batendo, um contrabaixo
E sua voz um saxofone.
Mas não podem ouvir jazz.
Por isso Lúcifer se revoltou.
E convocou os melhores jazzistas
Pra uma grande jam no inferno.

Sei que anjos não ouvem jazz.
Pois sua beatitude é de outra natureza.
Por isso eles se debruçam ao nosso lado enquanto escutamos,
Para contemplar em nossa face
A plenitude da verdadeira anunciação entorpecida.

Deixa eu bagunçar você

Durmo na esperança de sonhar contigo Acordo somente pro desejo de te encontrar Menos que obsessivo, meu amor por você é abrigo ...