Finalizou aquela garrafa de vinho como quem conclui um poema.
Ébrio, pensou em quanto tempo ainda teria pela frente. Quantas noites febris, monótonas, singulares ou solitárias ainda teria de suportar admiravelmente. Houve um tempo em que se considerava fraco. Bobagem; É preciso estômago pra suportar tanto. Lembrou de Tom Waits:
"Você precisa me dizer, Mr. Siegal,
Por que os arrasados são tão fortes?
Como os anjos fazem pra dormir quando os demônios deixam a luz da varanda acesa?"
Era verdade. Aqueles para quem a realidade costuma bater mais dura, que sofrem mais com simples contratempos, que deliram, que se auto-flagelam sem motivos, não são fracos. Pelo contrário. Reúnem forças de suas entranhas para superar as tormentas, Cada noite de sono é uma guerra, e conseguir sair cama pela manhã é uma vitória (ou coisa que o valha).
Revirou o quarto de bagunças que era sua memória e recordou o tempo em que negava essa dor constante, essa melancolia crônica. E percebeu a maneira pela qual esses horrores, por contraste, faziam brilhar ainda mais suas pequenas alegrias. No efeito claro-escuro que era sua vida, sempre houve tempo para a morte e para o amor. Não sabia ao certo como, mas havia feito mesmo dos seus mais belos dias, obras de arte expressionistas. Olhou no espelho e conseguiu enxergar alguma beleza, sem se importar se algum dia alguém perceberia aquilo. Era tarde da noite, e o ultimo cigarro queimava no cinzeiro. No dia seguinte, acordaria em desespero, mas haveria uma música para lhe trazer a paz, para abrandar as ondas no interior de sua alma, talvez haveria até uma voz para lhe dizer que, até que você esteja morto, os abutres não pousam sobre si.
Deixou o telefone tocar indefinidamente, poderiam ser boas notícias, poderiam ser más. Sorriu. O que importa é que não dependeria delas pra decidir o que fazer quando a peste invadisse o agridoce refúgio do seu lar.
Um comentário:
Li ontem, assim que publicou.
Dai voltei, porque esses escritos ficaram em mim, tive que voltar e dizer que li, e que me tocou profundamente.
Não trata-se de um homem, mas de um ser universal. A dor, esta dor, nossa dor, é universal...
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