quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Dizem que nossas escolhas nos fazem homens.
As minhas, na melhor das hipóteses,
Alimentaram um monstro.
Este monstro interior
Responde aos meus anseios
Melhor do que faz o homem que aparento,
mas não posso deixar que ele me domine.
Pois o abismo para onde ele me carrega
está repleto de pesadelos e fantasmas ainda piores.
Se eu não posso almejar
Os prazeres e as virtudes de um homem comum,
Que eu possa ao menos
Aproveitar o que me restou de bom,
O doce e o suave de viver,
A calmaria que jaz entre as tempestades;
Que não sejam mais tão terríveis os meus sonhos
Que eu precise escondê-los;
Que o chão não se retorça sob os meus pés,
Sangrado-os;
que a serenidade não seja só um fim distante
e eu encontre a coragem necessária
para saber recuar e pedir ajuda.
Que eu saiba me desculpar:
Pelos dias ausentes,
Pelo silêncio incriminador,
Pelo jardim de flores mortas que ergui
Em torno do meu lar.
Que haja um deus em cada canto da casa
E que todos eles possam me perdoar.
Que a possibilidade do abismo, então,
seja por fim afastada
E eu me cerque do amor daqueles que me querem
e deste deus que não ouso procurar.
E que a escuridão, enfim,
Venha apenas quando eu fechar os olhos.
terça-feira, 24 de junho de 2014
Pássaros que Voam Solitários sobre o Campo de Lírios
O café e os cigarros estão lá, quando
ninguém mais está. Boas companhias, mas que cobram o alto preço do vício e da
culpa sem chance de redenção. Quem me dera a prescrição médica necessária para
comprimidos que anestesiem o coração. Mas mesmo minha entrada no mercado negro
de afetividades ilícitas, onde poderia encontrar tais drogas, está condicionada
a teu perdão. Então postulo teorias malignas neste inferno particular, mas isso
é apenas uma forma de me livrar delas, para que reste em meu coração apenas a
ternura de dias deixados para trás, de cafés que não tiravam o sono e cigarros
que não deixavam um gosto tão ruim na boca. Dias em que até rimos desses vícios
sem sentido, dessas estradas sem rumos e das noites sem fim. Dias de ritmo (que
é o que dita a beleza). Mas também dias dos espelhos sem reflexos. E da vontade
cruel de deixar tudo pra trás, não sem antes deixar no ar o curto rastro de
nosso voo, como uma linha de fumaça negra descrevendo uma parábola dentro
da qual os mais espertos dentre os nossos lerão aquela tal palavra.
Colhamos logo estes lírios.
domingo, 22 de junho de 2014
Me and the Devil Blues Revisited
Eu e o diabo sentamos
para dividir uma garrafa de whisky
e falar de nossos problemas.
Problemas de homens, de garotos,
problemas de quem anda com o coração
fervendo num peito que não se fecha de tão cheio.
Então o diabo me disse:
"filho, encontre uma mulher pela qual valha a pena morrer
- e então morra,
porque você não vai querer viver
quando ela te deixar.
E eu sabia que ele estava falando de você
quando disse que estava apaixonado por uma garota.
Pois eu te disse uma vez que era você
a mulher com o inferno e o paraíso nos olhos
a única com uma voz capaz de enganar Lúcifer,
não disse? agora ele está aqui
e caminhamos lado a lado.
Baby, quando eu descobri que estava certo sobre ti
eu quase consegui rir.
Eu e o diabo,
tomando whisky,
escutando Willie Nelson:
"you look like the devil".
R.
quinta-feira, 12 de junho de 2014
À Uma Hora da Manhã
"Descontente de todos os meus descontentamentos e de mim mesmo, gostaria de me recuperar e me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite. Almas daqueles que amei, almas daqueles que exaltei, fortificai-me, sustentai-me, afastai de mim a mentira e os vapores corruptores do mundo; e Vós, Senhor meu Deus! acordai em mim a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que eu não sou o último dos homens, que eu não sou inferior àqueles a quem desprezo".
- Charles Baudelaire
terça-feira, 10 de junho de 2014
O dia em que as horas param
Desjejum
Mal tinha forças para segurar com
a firmeza necessária a faca com que cortaria o pão. Precisei rasgá-lo com os
dedos, o que se mostrou não apenas uma tarefa incomparavelmente mais fácil como
também, de alguma maneira, mais prazerosa. A forma como inseri os polegares na
massa fofa, para então cortar-lhe e retirar o miolo, transformando-a numa casca
vazia que logo levei a boca para consumir, pedaço por pedaço, como se fosse
carne, como se abrisse o estômago de uma pessoa ainda viva para devorar suas
vísceras, tudo isso me sugeria um ritual dotado de violência, que eu me
perguntava de onde teria vindo numa manhã fria e silenciosa como aquela.
Derramei algum café na caneca e me dirigi à janela. Queria contemplar a mata enevoada
até ser capaz de desvendar aquele impulso violento que por um segundo havia
sentido crescer em mim. Meus olhos fixaram a névoa, a paisagem tornou-se um
mero borrão, minha visão penetrou a fina camada branca e era como se eu
entrasse no sonho de alguém. No meu sonho. No sonho que tive a poucas horas. O
último antes de despertar. Numa casa vazia, esta mesma casa em que vivo, as
janelas abertas deixavam a névoa entrar, junto de um frio que parecia quebrar
meus ossos como vidro. O telefone, que não estava ali até então, tocou. Eu
atendi com pressa. Do outro lado da linha, uma voz. E eu sabia que era ela. Por
Deus, de alguma maneira eu sabia que era ela. Foram três palavras, mas quais? O
café esfriou, minha casa esfriou, meu corpo congelou, e era como se eu acabasse
de despertar suando frio de terrores noturnos. Não consigo lembrar o que ela
disse. Sentei na cadeira e comecei a chorar. Desesperado, inconsolável. Eu não
sei o que ela disse, mas fora algo terrível. Sonhos não fazem promessas, mas
mandam seus recados.
Almoço
Eu prepararia um risoto para a
moça que me visitaria ao horário de almoço. Depois da quase revelação que tive
durante a manhã, depois do acesso de ódio e medo inexplicáveis frente à
identificação da voz que me assombra até mesmo em sonho, uma ferida havia sido
aberta em meu dia, eu precisava urgentemente estancar aquela hemorragia antes
que ela se tornasse irreversível. E não seria um simples curativo que faria o
serviço sujo, eu precisava cauterizar aquele corte de maneira que nada sobrasse
dele além de uma queimadura vulgar e que nada dissesse sobre a origem daquele
mal – uma ferida aberta pelas garras de um animal selvagem. Então ela viria,
provavelmente entraria por aquela porta com uma garrafa de vinho nas mãos e seus
beijos incendiários nos lábios. Então, vem, dama invernal, eu dizia enquanto
cozinhava. Vem e me deixe beber esse vinho entre seus seios. Deixe-me sentir o
cheiro em sua nuca por baixo dos seus cabelos. Eu preciso de seu fogo, de sua
raiva santa quando me cavalga, das janelas para o infinito que se abrem em seus
olhos quando goza. Faça-me esquecer da poeira dos dias, da voz em meu sonho,
escandalize os vizinhos, me deixe marcas, prove minha seiva. Não traga seus
pudores ou seu bom mocismo, deixe que blasfêmias saltem de sua boca, que só
você pode me tirar do escuro. Venha com sua fome e suas melhores más intenções
sem exigir muito de mim, que eu apenas posso lhe entregar vontade, minha dor
insana, o fogo do inferno e um risoto ao funghi que, honestamente, não tem
graça nenhuma.
Interlúdio
Depois que C. foi embora, fui
tomado pela mesma sensação de sempre quando ela me deixa: Um estranhamento
causado por não saber exatamente o que eu significava pra ela, nem como ela
conseguia ser tão indiferente em relação a minha vida e a tudo que se passava a
nossa volta. Ela seguia o caminho rumo a seu marido, trabalho e batalhas
judiciais e eu ficava com minha confusão. Ela durava pouco e, como eu esperava,
era invadido a seguir por uma reconfortante paz e esquecimento dos eventos
matinais (e o que seriam dos conceitos de paz e felicidade não fossem os dons
de esquecer e se distrair?). De posse dessa tranquilidade, eu me concentrei em
meu trabalho, enfim. Tranquilidade que era interrompida momentaneamente e em
intervalos regulares quando, sentado à mesa em frente ao computador, sentia
algo como um sopro atrás de uma de minhas orelhas ou até percorrendo meu
pescoço. Depois de acontecer pela quarta vez, eu nem tinha mais o impulso de me
virar para trás na esperança de ver algo, meus pelos apenas arrepiavam, eu dava
um suspiro profundo e seguia trabalhando. Até que no meio da tarde, eu senti
mais uma vez esse sopro, mas não apenas isso. Senti como se duas mãos primeiro
repousassem sobre meus ombros, a seguir apertando-os e lentamente cravando as
unhas em mim, puxando-me para trás enquanto eu fazia força para permanecer como
estava. Eu sabia o que estava acontecendo. Eu estava alucinando, há tempos isso
não acontecia, mas havia voltado, só podia. Recostei-me na cadeira, respirava
fundo e cadenciadamente, como o médico havia me ensinado. Fechei os olhos.
Contei até dez. Neste intervalo, imagens aleatórias passaram por minha cabeça: Um
acidente de carro que não presenciei; meu pai deitado em seu caixão; Um grupo de
esfarrapados contra uma parede, fuzilado por policias que riam como hienas; Uma
tempestade violenta que me impede de sair de casa; Um padre me observando com
um olhar demoníaco; um feto ensanguentado sobre um lençol branco; uma mulher se
afogando e sua face tranquila enquanto ela afunda; o mar, silencioso e
inabalável e por isso mesmo imponente. Minha respiração falhou ante estas
imagens. Abri os olhos e surpreendentemente não apenas minha sala, mas toda a
casa está imersa em escuridão. Não eram sequer quatro da tarde. Corri para a
janela e tudo lá fora era escuridão e silêncio como eu ainda não havia
presenciado. A mata exibia então sua face mais ameaçadora, uma que eu não podia
ver. Eu precisava saber que horas eram. Quanto tempo permaneci com os olhos fechados?
A tela do computador estava apagada, apenas o mesmo tom escuro lá de fora. Suas
luzes em LED, no entanto, permaneciam acesas. Corri para o banheiro, a esta
altura com a boca seca e o coração disparado, tomei água da torneira e depois
lavei meu rosto com ela. Eu precisava voltar a mim. Minhas pupilas estavam
dilatadas. De repente, um grito estridente de uma mulher cortou o silêncio como
uma faca aquecida cortando uma língua humana. Era só uma voz, mas eram os
gritos mais altos que já ouvira. Quando consegui escapar da paralisia inicial,
antes que pudesse pensar em correr, um estrondo pesado contra a parede me
paralisou novamente, junto ao som de vidro partido enquanto os gritos cessaram.
A esta altura meu estômago se contorcia de fome e de pavor. Sim, fome. Não
havia almoçado – não houve espaço para isso naquela orgia de tesão,
esquecimento e indiferença – ou comido qualquer outra coisa além daqueles
pedaços de pão pela manhã. Eu me sentia fraco e tonto. Corri até a sala, vi meu
computador destruído ao chão, em meio ao vidro da mesa espatifado. Caí de
joelhos, cacos de vidro penetraram minha pele e a última coisa que vi antes de
desmaiar foi o vulto de uma mulher ao lado da porta de entrada.
Jantar
Quando acordei, vestia roupas que
não eram minhas. Eu havia dormido ou só cochilado, um leve desmaio? Porque a
vida, quando dormimos demasiado, passa, e a despeito de nossa vontade, nos
enfia em roupas que não nos cabe mais, faz com que nos sintamos desconfortáveis
até mesmo no lugar que outrora chamamos lar, trocando os móveis de lugar,
enfeitando as paredes com desenhos estranhos e runas antigas, e aí sabemos que
não somos mais os mesmos, que aquelas novas roupas estão ali para ficar e somos
nós que precisamos nos ajustar a elas, pois não há nesse mundo todo um só
alfaiate hábil o suficiente para costurar os sonhos que pouco a pouco deixamos
para trás. E havia sangue nestas roupas. Pelo chão, havia estilhaços de muito
mais coisas que um computador e minha mesa. Pedaços do teto, livros rasgados e
restos de comida se misturavam com o pó acumulado e fotos que se espalhavam
pela cerâmica fria. As fotos eram de momentos diferentes da minha vida, de
tantas pessoas que passaram por ela... quando peguei elas em minhas mãos, notei
que nas fotografias o rosto de todas as pessoas estavam riscados. Meu estado
era de completa confusão mental. Quem havia feito aquilo? Quem esteve ali e me
deixou daquela forma? Quem era ela, que eu vi a segundos de perder a
consciência? Súbito, a minha mente, uma recordação. Uma voz. A voz que me
despertou, era dela. Enquanto eu jazia entre vidros e poeira, sua voz sussurrou
em meu ouvido três palavras que me despertaram. Era a mesma voz do telefonema.
“Sua hora chegou”, ela dizia. As palavras que me haviam aterrorizado pela
manhã, não surtiram efeito algum desta vez. Eu me sentia em paz. Era a
convicção de que não havia mais nada a ser feito, que todas as criaturas sob o
sol encontram o mesmo fim e não é dada a elas o momento de escolher este
momento. É possível alguém estar feliz sabendo que este momento está tão
próximo? Eu não sei. Minha janta, que eu não lembro de ter comido, espalhada
pelo chão, irreconhecível vômito de toda uma vida, angústia misturada a pedaços
de verduras e legumes. Ergui-me cambaleante. Dirigi-me ao quarto e deitei com
placidez. Fechei os olhos e tratei de imaginar como se pareceria esta força
irrefreável que nos traz aqui para nos arrancar a qualquer hora. Dormi com o
sentimento de que o verdadeiro amor é capaz de encontrá-lo no fim. Tudo que eu
deveria fazer era esperar.
Rodrigo R. Vitorino 10 - 06 - 2014
No more cigarettes
Foto: Elena Oganesyan
"Você é aterrorizante, estranha e bela;
Uma coisa que nem todo mundo sabe como amar"
- "Para mulheres difíceis de amar", Warsan Shire.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
Os Primeiros da Gangue a Morrer
(Para Marlon Brando, Neal Cassidy, Amy Winehouse, Cazuza, Chet Baker e Maysa)
Você sabe.
Sempre há esse cara ou aquela garota com um magnetismo peculiar. Que se destaca
em meio à turma. Que centraliza as atenções. Que desperta amor e ódio na mesma
intensidade. Que encobre suas falhas com gestos de delicadeza e extrema
fragilidade. Ou que explode em gritos e ameaças contra aqueles que lhe estendem
a mão. Que transformam a vida de todos ao redor num inferno. E ainda assim
ninguém consegue imaginar uma vida sem eles. Existem essas pessoas que “nasceram
do lado errado do rio” e nunca se importaram com isso. Que são talentosas, mas
seu principal dom é de serem muito maiores que elas mesmas, de terem uma
reputação que chega antes delas, de terem seu nome atirado à lama e elevado aos
céus na mesma proporção e simplesmente não se importam. Ou fingem que não se
importam e faz com que as amemos mais. Há essa mulher ou aquele homem que,
diante deles, nos sentimos encarando um abismo sem fim. Não conhecemos seus
demônios. Nos piores dias, os julgamos; nos melhores, desejamos ser como eles,
ou ao menos beijar-lhes a face. Seres que encarnam os perigos do vício. O risco
de voar alto demais. A loucura à espreita. A escuridão que é consequência natural da
luz. Os tons de cinza entre o preto e o branco. Todo veludo e todo espinho
possível no espírito humano. No fim das contas, apenas isso: Humanos. Falíveis.
Apaixonantes. Os primeiros da gangue a morrerem.
quinta-feira, 5 de junho de 2014
Closes Exagerados
"Eu gosto de ler declarações descaradas de amor. Tô falando sério. Eu mesma vivo rascunhando algumas pra deixar em stand by. Eu até escreveria 'vai que...', mas os publicitários fazem questão de roubar todos nossos clichês e a gente tem que se virar de outra maneira. Eu costumo apelar pro humor, ou pra tentativa de, porque caso a coisa não funcione eu saco a desculpa do 'imagina, era só uma piada'.Mas acho bonito pacas quando alguém fala de algum detalhe (o que a publicidade não nos rouba é sempre do Roberto Carlos) do outro, um maneirismo, algo que parece pertencer única e exclusivamente a quem notou. Não existe outra forma de gostar senão aquela de se encantar por coisas aparentemente banais aos olhos dos outros. Já me apaixonei por uma virada de página de livro, um engasgo, um palavrão fora de contexto, um beijo roubado na Martins Fontes que não ficou devendo nada ao de Wong Kar-Wai. Aliás, esse cara tem as manhas de traduzir o amor num close exagerado de um pescoço. E na verdade é isso. Closes exagerados. Sei lá que mecanismo do universo rege tudo isso, e pouco importa se existe algum. Por um tempo são essas pequenas peculiaridades, sob as lentes de uma grande angular, que nos estampam sorrisos bestas na cara. E, no meio dessa merda toda, um sorriso besta na cara é bem mais do que a gente um dia esperou."
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Poesia
Pra quem vem até aqui procurando coisa boa, não precisa perder tempo lendo meus textos e vai direto pra cá:
Poemas, Cubas & Torneiras
Muita coisa boa num canto só. Ou talvez eu esteja só sentimental demais. Vai lá. De nada.
Mais ou menos a terra
(Maira Parula)
Parece que a língua da gente vai diminuindo
e você não tem mais a mesma semana inteira de falar
a mesa ao lado conversa ri
e você não quer estar ali
não porque não goste
não porque não sei
é que não entende
palavras sorrisos
mastigando o coxão duro
das histórias de família
as atualidades
quem fez o gol na final
batata não se guarda na geladeira
a criança que saiu invertida
mas perfeitinha
os smarts tocando
todas as avós conectadas
e você arrancando seus fios da parede
porque não sabe falar mais
não sei se quero
a chuva completa o seu copo
todos vão para dentro
no céu o refluxo de cores
ninguém vê
você os engole
e até salivados não calam a boca
mais uma vez você não quer estar ali
bebe a chuva inteira e os afoga
o barco em ponto morto
as vozes vão ficando mais longe
dentro de você não pedem socorro
dentro de você celulares não pegam
todos se deitam
todos se calam
dentro de você
é mais ou menos a terra.
domingo, 1 de junho de 2014
Traficando Desesperança em Tempos de Paz
Sinto como se
houvessem escrito ofensas em minha lápide;
Sinto um tremor: Como
se outra pessoa houvesse confessado e morrido pelos meus pecados
E não houvesse sido
Jesus Cristo, apenas uma desconhecida cantora de jazz em Cuba;
Sinto como se neste
exato momento alguém cavasse um buraco
Um buraco lento e seco
e irregular embaixo de minha casa,
E temo que descubram o
local exato onde enterrei a criança que eu costumava ser.
E neste buraco plantem
uma árvore trêmula de flores brancas que assombrará meus dias;
Sinto como se
houvessem assaltado meus sonhos;
Como se deus existisse
por um minuto todos os dias;
Como se a faca com que
me corto estivesse cega
“E tu me negaste o
vinho com que te inebrias...”
Sinto como se aquele
homem que mora através do vagão
Fosse agora meu amigo,
me cobrisse de presentes e beijos;
Sinto como se eu
precisasse ajuda-lo;
Sinto que algo nos
liga profundamente:
Dor, sombras,
Troquei as ultimas
lâmpadas por luzes de natal;
Os morcegos se foram de
uma vez,
Dispersos convivas
sentam-se comigo a mesa
E sinto como se apenas
essa noite eles não pudessem me fazer mal.
R. (Dezembro, 2010, e ainda atual...)
sábado, 31 de maio de 2014
A Vida é Sub-reptícia
"Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada,.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia."
(Trecho de "Passagem do Ano", de Carlos Drummond de Andrade)
sexta-feira, 30 de maio de 2014
A Case of You
"You're in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet
Oh, darling, I could drink a case of you
And still I'd be on my feet
Oh, I'd still be on my feet."
Joni Mitchell - Self-Portrait
quinta-feira, 29 de maio de 2014
Aquela vida inteira sequelada
(Fernanda D'Umbra)
Por mim, escreveria até a morte (farei isso)
iria até sua casa e me deitaria no meio fio
eu ia esperar que você saísse
jornal na mão, cabelos limpos
e uma cara safada, rendida
marcada por dois olhos
locados por uma construtora
que nos demitiu no primeiro dia
e nós, (sempre bem vestidos) não sabemos
o que fazer com aquele carro, aquela casa
aquela vida inteira sequelada
aquela musica que toca no rádio
e a gente dança (sem entender nada)
Fernanda publica no Sem Gelo - Um Blog Puro
Por mim, escreveria até a morte (farei isso)
iria até sua casa e me deitaria no meio fio
eu ia esperar que você saísse
jornal na mão, cabelos limpos
e uma cara safada, rendida
marcada por dois olhos
locados por uma construtora
que nos demitiu no primeiro dia
e nós, (sempre bem vestidos) não sabemos
o que fazer com aquele carro, aquela casa
aquela vida inteira sequelada
aquela musica que toca no rádio
e a gente dança (sem entender nada)
Fernanda publica no Sem Gelo - Um Blog Puro
terça-feira, 27 de maio de 2014
Dry Martini
Então ela disse que sexo sem amor era como "pizza sem queijo". Aquilo me deixou confuso. Ela disse, claro que pode acontecer, pode até ser bom, mas nunca será tão bom como se tivesse queijo. Os sabores são incomparáveis, e com amor é insuperavelmente melhor.
Repliquei que aquela não era uma boa metáfora pra mim, eu que não concebo pizza sem queijo. Eu diria que sexo sem amor está mais para um dry martini sem a azeitona. Sendo que o amor é a azeitona. Ou seja, a azeitona é legal, é mais bacana mesmo com ela, mas não é indispensável para um bom martini. O importante mesmo é que o Gim não seja vagabundo. E com vodka nem pensar.
segunda-feira, 26 de maio de 2014
"Consegui viver até hoje porque desde cedo adestrei-me a me perturbar, a me criar tormentos, a tentar me destruir: confiando sempre nas minhas grandes reservas de eletricidade. Renasço cada dia dos meus próprios crimes. Viver é refazer o erro".
- Murilo Mendes
Extraído de Sob o sol sobre a sombra
Amanhã cedo sairei pra cometer meu crime mais perverso. Eu e minha sede infinita, eu e me olhos de meia-noite, eu e minha ânsia. Minha confusão mental no esteio de seus passos. Levo comigo a santidade dos assassinos e a serenidade dos internos de um asilo psiquiátrico. Dirão que fui avesso à sociedade. Psicopata, dirão. Pederasta, dirão. Que digam. Que sussurrem meu nome a seus filhos para inspirar-lhes medo quando não quiserem que saiam à noite. Blasfemo como só os anjos podem fazer.
E assim transformo
um desejo por amor
em crime
ofensa
uma obra
de arte.
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Spleen
Eu sou como o rei de um país chuvoso,
Rico, mas impotente, jovem embora idoso,
Que, dos preceptores desprezando os rituais
Enfada-se com seus cães e com outros animais.
Nada o diverte, nem a caça, nem o falcão,
Nem o seu povo morrendo diante do balcão.
Do bufão favorito nem mesmo a grotesca balada
Distrai desse doente cruel a fronte enrugada;
Todo flor-de-lis, é um mausoléu o seu leito,
E as aias para quem todo príncipe é perfeito,
Não sabem mais que roupa sensual vestir
Para fazer esse jovem esqueleto sorrir.
O sábio que lhe faz ouro não tem conseguido
Extirpar-lhe do ser o elemento corrompido;
Nem os banhos de sangue ensinados pelos romanos,
E no declínio sempre lembrado pelos soberanos,
Conseguiram reaquecer essa carcaça exangue e embotada
Onde em vez de sangue corre do Letes a água
esverdeada.
(Charles Baudelaire)
terça-feira, 20 de maio de 2014
Despertar de Ícaro, Lucílio de Albuquerque
De Ícaro eu guardo o cheiro de cera derretida.
A visão de suas asas destruídas
O som de ossos se partindo
Seu corpo contra as rochas
Ícaro, que desobedeceu seu pai
Que contrariou sua natureza.
A quem não bastava apenas escapar
Que aproximou-se do sol quando sabia que não poderia durar
Talvez eu também tenha desejado
Mais do que poderia ter
E aquecido meu corpo com um calor que queimaria minhas asas
Sim, eu tive meus dias de Ícaro
Desejei ver a luz do sol perto demais
E agora a queda é só questão de tempo.
segunda-feira, 19 de maio de 2014
sábado, 17 de maio de 2014
By the Morning
Artista: Paul Kelley
Os olhos do sol entram pela janela e
encontram os teus,
entreabertos numa manhã sem planos.
O sol, em seus sonhos antediluvianos,
Jamais havia sido tão feliz.
Trípitico
(Amélia Pais)
I
desamada
desarmada
vem o vento
vai-se o tempo
nem o tempo
nem o vento
dá o tempo
de sarar
de repente
vem o dia
chega a hora
borda a fora
a acostar
volta atrás ó cavaleiro
volta atrás se quer's teu bem
tua amada
tua armada
com o tempo
desarmada
traz também
II
o que se sente
entre o que se pensa e diz
o que se pensa
entre o que se sente e cala
o que se cala
entre o sentir e o ser
o que se diz
entre o que se ama e sonha
nós
no mais fundo de nós
nós perdidos
nós vazios
nós à margem.
III
Quem vai responder
o que não tem resposta
Quem vai falar
o que não tem palavra
Quem vai te achar
o que em nós esquece
Quem vai roer
o que em nós sufoca
Vem noite ou pranto ou dia ou vento
Quem quer que sejas que seja o novo
Abrindo o canto na carne clara
segunda-feira, 12 de maio de 2014
O Abismo que Cavaste com Teus Pés
"A Lonely Roman", Pavel Svedomsky
Porque o céu hoje cedo, silenciou, depois de uma madrugada
de trovões e muita água;
Porque todos os seres noturnos cessaram seus lamentos;
Porque perdeste tua medalha da sorte em meio à multidão
indiferente;
Porque nas águas do Atlântico aprendeste que o Mar é
insuperável;
Porque gemendo descobriste que amar é um verbo intransitivo;
E foi também gemendo que descobrira que há sempre um novo
amor;
Porque caminhando a estrada sempre parece mais longa,
enquanto
de tua cama parece a ti que não há estrada alguma;
Porque com Cioran percebeste que todos os seres são tristes;
E com Shakespeare repetiste que o Inferno está vazio e todos
os demônios estão aqui;
Porque desperdiçaste teus melhores dias crendo estar
enfermo;
Porque conheceste cedo o mistério divino e rechaçaste-o;
Porque não te apetece a cólera ou a fé;
Porque és tu, jovem Narciso, teu único algoz e enfermeiro;
Porque as pedras rolam em teu peito;
Porque tens consciência daquilo que deveríamos ser
ignorantes;
Por tudo isso, deves deixar de contemplar a este abismo
interior,
E reparar na inefável sutileza da canção que apenas tu és
capaz de ouvir.
Agora dorme, pois que essa tristeza é passageira.
domingo, 11 de maio de 2014
Wallace Stevens
Song
There are great things doing
In the world,
Little rabbit.
There is a damsel,
Sweeter than the sound of the willow,
Dearer than the shallow water
Flowing over pebbles.
Of a sunday,
She wears a long coat,
with twelve buttons on it.
Tell that to your mother.
Canção
Há coisas esplêndidas acontecendo
No mundo,
Coelhinho.
Há uma donzela,
Mais doce que o som do salgueiro,
Mais suave que água rasa,
Correndo sobre seixos.
No domingo,
Ela veste um casaco longo,
Ela veste um casaco longo,
Com doze botões.
Conta isso a tua mãe.
sexta-feira, 9 de maio de 2014
O raciocínio é reto e tenta seguir
a precisão cínica das formas geométricas
em seu percurso, é atingido no peito
pela insensatez curvilínea e imprevisível das paixões.
A ferida, quase fatal, não mata, mas também
não torna mais forte.
O Amor é um predador.
E a Razão, sua presa predileta.
Há quem o coloque num pedestal, e
não são poucos. Não o trate desta maneira.
O seu amor é o que há de melhor
e pior em você
tal qual seu ódio, e seu raciocínio
não pode te salvar de nenhum dos dois.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
A Última Declaração
Eu quase te amei. Faltou pouco.
Foi por bem pouco, na verdade. Talvez tenha sido até por acaso que não tenha te
amado. Se eu tivesse segurado sua mão enquanto você entrava naquele táxi,
poderia ter sido, mas... o motorista me perguntou algo, eu desviei o olhar,
você fechou a porta e partiu, sem que eu tivesse te amado. Foi quase, mas eu
não te amei. No máximo, podemos dizer que me entreguei sem medo e com ardor,
com a fúria incontrolável de uma manada de búfalos, com um prazer quase
assassino, mas não te amei. Invadi o templo do seu corpo com sede e fome de
tudo que era você, lancei promessas desesperadas ao seu ouvido, mas não pude
dizer “eu te amo”, pois que eu não te amava, mas foi quase. Havia algo. Fui
perverso e santo a um só tempo, reconheci em ti o que reconhecia de melhor e de
pior em mim, mas não te amei. Existe algo nas estórias de amor que eles contam,
uma pedra fundamental que une definitivamente os seres que amam, e este algo
não nos visitou todo aquele tempo que estivemos juntos. E esse desconhecido
ente surgiria fatalmente em algum momento se permitíssemos que esse tempo
viesse, mas, quando você disse que iria embora, eu sabia que aquilo era
definitivo. Furtivamente, quis que você ficasse. Talvez fosse o tempo de mais
um drink. Ou um café. A gente poderia ter escutado junto sua banda preferida e
elegeríamos uma musica para ser a “nossa música”; mas você queria ir. E eu não
segurei sua mão. E eu não te amei, de verdade. Não sei se foi melhor assim. Eu
ainda não sei o que você queria. Eu não me importo se você saiu satisfeita. Porque
não houve nada no mundo que fosse mais perfeito. Apenas posso imaginar que
algum dia, em algum momento de distração, eu acabaria por te amar. E eu cairia como
caiu o mais nobre dos anjos. Mas eu quase te amei. Ali. Em algum lugar entre o
gozo e a exaustão, eu olhei dentro de teus olhos. E vi tudo aquilo que eu
desejava, tudo que precisava, mas não vi o amor. Mas você estava tão bonita que
poderia ser minha última visão antes da morte. Sem orações, sem vida passando
diante dos olhos, sem amor, sem nada. Apenas você, fugaz, trêmula, subterrânea,
diante dos meus olhos.
sábado, 22 de fevereiro de 2014
Tudo, que não seja tédio
"Waiting for a friend", Malcolm Liepke
Em tempos como este
você apenas deseja qualquer coisa, e uma
dose forte desta coisa
talvez uma tragédia que
te arremesse pra longe de sua zona de conforto
como um caminhão que te acerta
enquanto você caminha tranquilamente pela calçada.
Talvez seja uma ligação
uma notícia ruim, um segredo revelado
coisas frágeis que se quebrem
no momento oportuno
apenas qualquer coisa
que te faça quebrar uma promessa ou
trair alguém que você ama, até mesmo partir
para nunca mais voltar, um lugar distante
onde você nunca mais tenha que mentir.
Em tempos como este
não lhe é mais permitido deitar-se
com as mãos sob a cabeça e os olhos
cerrados contemplando seu
nada interior sua chaga seu medo
apenas qualquer coisa
que te faça levantar e brigar
por algo que seja impossível
pode ser o amor daquela mulher ou talvez
uma noite de sono tranquilo.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
Fim de Festa
Meu amor por você chegou ao fim
É tudo que tenho a dizer
Também não precisa sair assim
Espere o dia amanhecer.
(Itamar Assumpção)
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Homesick Blues
O quão triste é alguém sentir falta dos bares que frequentava?
A nostalgia é um senhora que se masturba pensando nos piores amantes que já teve.
sábado, 8 de fevereiro de 2014
Estar Sozinho
Estar Sozinho
(Charles Bukowski)
Quando você pensa em quantas vezes
tudo dá errado
você começa a olhar para as paredes
e permanece lá dentro
porque as ruas são o
mesmo filme antigo
e todos os heróis acabam como o
velho herói do filme:
bunda gorda, cara gorda e o cérebro
de um lagarto.
Não é de admirar que
um homem sábio irá
escalar uma montanha de 10.000 pés
e sentar-se lá esperando
e vivendo de baga de arbusto
em vez de apostar em duas covinhas dos joelhos
que certamente não vão durar a vida inteira
e 2 em cada 3 vezes
não sobreviverá por uma noite.
Montanhas são difíceis de escalar.
as paredes são suas amigas.
conheça suas paredes.
O que eles nos deram lá fora
é algo que mesmo as crianças
se cansaram.
Permaneça com suas paredes,
elas são seu amor mais verdadeiro.
Construa onde ninguém constrói.
É o último caminho que resta.
(Imagem: Peter Lorre as Raskolnikov, "Crime e Castigo", de Lusha Nelson)
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
"Ele nada compreendia desse insondável mistério que é a existência humana, individual ou coletiva; que escapava ao seu entendimento a mais ínfima malha desse inextricável e infinito emaranhado destes milhões de destinos individuais que se entrecruzam e se separam por artes do acaso; que o mundo provavelmente não tem, a rigor, nenhum sentido (e aqui reproduzia, de memória, confusa citação) 'porque, possivelmente, tudo que existe é fragmentado, incompleto, abortado; eventos com término mas sem começo; outros com apenas o segmento intermediário; coisas que tem a parte anterior ou a posterior, mas não ambas; e tudo isso boiando como num prato de sopa, non qual vez ou outra alguns fragmentos se juntam por acaso para formar um todo'; que somente a Razão alucinada pode pretender ser possível ordenar esse caos, descobrir causalidades nessa infinita cadeia de acidentes".
- Edmundo C. Coelho, "Crônica da Sociologia Assassinada ou Ao Mestre, com Carinho".
Raduan Nassar, Jorge Luis Borges, Baudelaire e, agora, Edmundo Campos, não deixando eu me sentir tão sozinho....
sábado, 25 de janeiro de 2014
Cigano*
Num outono qualquer, ele aprendeu a ler mãos. De
terceiros. Mas nada de linhas, eram as mãos seres autônomos, independentes do
resto do corpo, cheias de vida própria e desejos tão incompreensíveis quanto
reveladores. Os movimentos, a superfície da pele, os toques, a cor, o cheiro,
tudo nas mãos lhe surgia como uma ligação do indivíduo com o infinito. Haviam
mãos cansadas pelo labor diário que constrói a máquina; mãos furtivas que
perturbam a paz de quem se deixa tocar; as assassinas e as inquietas, que
determinam a danação de seus donos; mãos com estilo, belas como o olhar
misterioso dos gatos; Bastava olhar para dois amantes de mãos entrelaçadas e
saberia dizer quando se separariam. Podia ver alguém dedilhando uma guitarra e
saberia qual o blues mais adequado. Dependendo do modo como uma mão de dedos
longos e unhas vermelhas segurava um cigarro, poderia dizer se ela era feliz.
Leu as mãos de todos os seus amigos, e lhes trouxe boas novas. Leu as mãos de
empresários, e previu suas falências. Leu as mãos de loucas, dançarinas,
prostitutas e escritoras e se apaixonou por todas elas. Mas não podia ler as
próprias mãos. Tentou diversas manhãs, duzentas madrugadas, mas não conseguia.
Tentou ensinar seu dom a sua amante, mas tudo em vão. Uma noite, sentado à
beira-mar, com uma garrafa de vodka, passou quatro horas e vinte e três minutos
observando as próprias mãos, e só via marcas de cigarro, sinais de nascimento,
pontas de dedos amareladas e furos de agulha. Esvaziou a garrafa, e chorou.
Nunca mais souberam dele. Mas uma vez ou outra surgem estórias de um homem em
algum lugar, não se sabe se no Amazonas ou no Marrocos, capaz de beijar sua mão
como se adivinhasse um segredo.
*Republicado com alterações.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
"No more going to the darkside with your flying saucer eyes/No more falling down a wormhole that I have to pull you out/The wroggling, squiggling worm inside/Devours from the inside out/No more talk about the old days, it's time for something great/I want to get out and make it work/So many lies/So feel the love come off of them/And take me in your arms."
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
Senso Comum
Assim choram os homens:
Escondidos
e as mãos encharcadas de lágrimas
são enxutas nos lençóis que contem
sobras de noites que ficaram para trás,
e que gritam como os internos de uma casa de custódia.
É de conhecimento geral:
não há desespero em vão, e depois da tempestade
sempre esperamos (...)
E esperamos.
Todos sabem – os pássaros não voam para o lado certo
por senso de direção:
- É instinto de sobrevivência.
R.
R.
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
Minas
(Ana Martins Marques)
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
sábado, 18 de janeiro de 2014
Hotel das Estrelas
Algumas pessoas não percebem que
estavam perdidas até que estejam enfim trilhando o caminho correto. O contrário
também pode acontecer, e a descoberta raramente é indolor. Nenhum deles dois
esperava que aquela fosse uma noite comum, mas tampouco esperavam a madrugada
ardente e corrosiva que os consumiria num hotel barato onde encontrariam
redenção. Abrigo enfim dos perigos sobre os quais tanto falaram em suas
conversas que seguiam noite adentro à distância. Eles foram para o bar como
dois amigos que não se viam há tempos, ainda que no passado deles existisse uma
marca, uma pequena cicatriz deixada por um encontro que eles preferiram, mais
por receio que por educação, ignorar ao se abraçarem passados dois anos. Mas,
se fizeram isso pensando que seu encontro não reacenderia aquele fogo antigo, a
pequena chama que nasceu numa noite de ano-novo qualquer, enganaram-se
clamorosamente. Demorou pouco para que nem todas as cervejas geladas pudessem
baixar suas temperaturas corporais e que qualquer recato impedisse o tráfico de
olhares e toques furtivos de mãos e pernas que não tardariam a se transformar
em beijos. Digamos que tenha sido apenas tempo o suficiente para falarem das
desventuras que se abateram sobre ambos, algumas alegrias que vieram e pudessem
confirmar que ainda se alegravam na presença um do outro. Nada mais precisava
ser dito, apenas feito. E eles fizeram. Da melhor maneira, no pior hotel,
esquecendo seus pudores no bar recém-deixado e sujaram-se com cada gota que
pingava de seus corpos penetrando-se mutuamente, ela com sua língua na boca
dele, seus gemidos em seus ouvidos, suas unhas em sua carne e ele buscando à
vontade os orifícios dela que lhes dessem prazer, seu pau indo e vindo de sua
buceta úmida e quente, seus dedos procurando seu rabo e seus dentes marcando
seu pescoço tudo isso sob a luz das estrelas que teimavam em entrar pela janela
aberta junto com o vento, o único capaz de trazer algum resquício de frescor na
noite abafada naquele hotel e devorando-se pedaço por pedaço amanheceram enfim um
dia em chamas que se prolongou além do sol nascente.
O que veio depois, entretanto,
transformou esta noite em um sonho distante que por vezes parece não ter
acontecido. Aos poucos os amantes foram se descobrindo dois estranhos sem ter o
que compartilhar. Quando essa percepção abateu-se sobre os dois é difícil
precisar mas o fato é que eles não conseguiram mais se ver ou conversar como
antes. Ainda assim, algo permanecia grudada a ela feito um parasita a
roubar-lhe as energias, a lembrança dele e daquela noite sobreviveram de algum
modo nela, e se a mente não reconhecia naquele homem o mesmo que a desbravara
com doçura selvagem, seu corpo ressentia-se de sua ausência. Uma noite,
alucinada pela falta que aquele agora estranho fazia a ela, depois de masturbar-se
mais de uma vez sem conseguir criar uma imagem sequer dele, porém sabendo
exatamente em que pensava, ela saiu de casa. Acreditou estar sem rumo, mas em
algum momento de sua jornada sua consciência retornou e ela reconheceu o
trajeto que fazia: caminhava na direção daquele hotel. Subiu as escadas
enquanto um calafrio percorria sua espinha e sentia-se cada vez mais
lubrificada. Pediu à atendente o mesmo quarto e lá se deitou. A maneira como se
satisfez assustou-a, mas aquela seria sua primeira noite de sono tranquila
desde que ele se foi.
Ele, no entanto, não pareceu
sofrer do mesmo mal. Parecia indiferente à estranha distância que se pôs entre
os dois. Partiu de volta para sua cidade sem falar com ela. Lembrava daquela
noite sempre com um sorriso no rosto, mas curiosamente distinguia os
acontecimentos mais tórridos do hotel da mulher que sujeitou-se ativamente a
seu desejo, que cavalgou-lhe impetuosamente e que colhera em sua boca o seu
fruto. Em suma, lembrava-se da canção, mas ignorava a cantora. Recebeu em seu
e-mail os detalhes da noite em que ela sozinha havia ido até o hotel das
estrelas. Tratou o fato como uma leve excentricidade, sem maior peso e sem se
dar conta do desespero que se abatia sobre ela. O tempo passou e a memória
daquela noite se esvaia de sua mente. Demorou um ano até que voltasse à cidade.
Ele já não era o mesmo, nem a cidade. Não se animava com a possibilidade de
reencontrar conhecidos, antigos casos, velhos lugares. Algum impulso o fez
ligar para ela – a velha convicção masculina de que ela sempre estará lá,
esperando-o. Ela disse que o encontraria, mas não sabia quando. Os dias se
passaram, o momento em que ele partiria novamente se aproximava e ela não dava
sinais de que apareceria, e aquilo ia causando uma sensação estranha nele. A
cada noite, a lembrança dela se tornava mais nítida. Seu corpo, sua boca, suas
curvas, até mesmo sua voz. Não conseguia falar com ela. Solitário, ébrio, uma
noite procurou-a ativamente sem sucesso. Seu coração fazendo menção de saltar
de seu peito a qualquer instante. Uma saudade repentina de todos os lugares
pelos quais havia passado com ela. Passou pelos mesmos bares, pela mesma orla,
até se encontrar em frente ao hotel em que treparam pela última vez. Lembrou-se
do e-mail dela. Tentou lutar contra a força que o havia levado até ali, mas se
viu incapaz de resistir e em pouco tempo estava deitado sobre a cama e seus
lençóis suspeitos, no mesmo quarto em que ela estivera meses atrás e poderia
jurar que sentia seu cheiro. Não conseguia mover-se, nem mesmo para se
masturbar, ainda que as lembranças estivessem mais claras que nunca. Chorou
como há muito não fazia, copiosamente, digno de pena. Passou uma noite inteira
acordado. Pensava apenas na ironia perversa que subjazia à punição que recebia
graças a seu cinismo e descrença. Quando o sol entrou pela janela aberta,
encontrou-o estático, com certo sorriso triste a enfeitar-lhe a face.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
Aos descuidados a flor da pele
Só não ando por aí carregando meu coração na mão
porque esqueceria-o na mesa do bar.
segunda-feira, 6 de janeiro de 2014
quarta-feira, 1 de janeiro de 2014
Para o Ano Novo
Precisava de algum dinheiro para
ter paz. Garantir-me o café, os cigarros, as cervejas e as entradas para o
cinema nos dias que viriam. Foi com isso em mente que me preparei para a virada
do ano. Minha camisa azul displicentemente abotoada sobre meu corpo, a calça
branca, colar no pescoço, um digno filho de Iemanjá, parti para a praia naquele
dia 31. Eu fui para a praia porque precisava de algum dinheiro para ter paz.
Para enviar as cartas que escrevi com tanto esforço e sinceridade sobre-humana.
A garrafa de vinho pela metade foi enfim esvaziada porque eu não precisava
estar sóbrio para o que iria fazer. O vinho é um licor que só pode ser
apreciado se você se deixa possuir por ele. Permiti. E Decidi que iria
caminhando até a praia. Mentira. Eu não tinha dinheiro. Era por isso que estava
indo. Para colocar em prática o desonesto e mau-caráter plano. No caminho, nas
ruas, toda a euforia ritualística do ano-novo. Todos pareciam felizes, menos eu,
mas é claro que as aparências enganam. Eu estava apenas melancólico. Porque fim
de ano é assim mesmo. Lembrava que há algum tempo que não me apaixonava, e isso
definitivamente não era bom. Se cicatrizes são boas lembranças, feridas abertas
não são boa coisa, são piadas que perdem a graça muito fácil. Somente as
paixões me fazem parar de cutucar essas feridas do amor. E eu não tinha
nenhuma. Falo de paixões, não de feridas. Mas essa cidade possui atalhos, eu já
conheço alguns deles, e antes que essas dúbias reflexões pudessem ameaçar
minhas intenções, como num passe de mágica, tenho a minha frente o mar, seus
perigos. Vejo-o de cima, e sinto-me altivo. Quantas vezes já o desafiei? Até
aqui, venci. Não o temo, ainda que o venere. O mar não é Deus. Vejo também as
pessoas. Milhares delas. Dezenas de milhares. Centenas de milhares. Ainda falta
algum tempo para a hora certa. Sento-me à beira do mar infinito. Retiro o colar
do meu pescoço e entrego em
oferenda. Brinco com as ondas que chegam até meus pés. Estou
vestido com a graça formidável dos indecisos. Será que devo. Claro que devo.
Estou jogando, entenda. É preciso arriscar. E eu necessito de dinheiro. Para
ter paz. Acendo um cigarro – ele sempre está, e sempre estará nessas minhas
histórias – e percebo alguém se aproximando. Uma pessoa bem-vestida, cores
diversas nos tecidos que vestem seu corpo e nas tatuagens que vestem sua pele.
Ela me pede um cigarro. Acende. Com toda a sensualidade com que um cigarro
merece ser aceso, nenhum gesto desperdiçado, mãos, boca, olhos, até mesmo os
cabelos conspirando para uma fotografia perfeita da beleza esfumaçada de um
fumante. “O mar não se acalma, mesmo à noite”. Pronuncia essas palavras e sai.
Fumo meu cigarro; quase disse que essa agitação do mar é apenas na superfície,
talvez ele tente nos intimidar para não penetrarmos nele, mas sob essas ondas
está uma paz inigualável e é para lá que quero ir quando morrer. São quase
meia-noite. Quando chegar a hora, fogos de artifício agitarão o céu, e todas
essas pessoas que vieram de longe para vê-los, estarão com seus olhos vidrados
no céu, e bolsas e carteiras estarão à mercê de mãos habilidosas. E eu as
tenho. Ela dizia que eu tinha mãos habilidosas. Mas agora que minhas mãos já
não servem para moldá-la em prazer, como quem toca a argila molhada, deixo para
utilizá-las em outros movimentos sutis, como bater bolsos alheios. Os fogos
estouram na grande noite do avô ancestral, eu me movo como um sussurro por
entre os distraídos, levando o que consigo. Mas havia alguém que não olhava o
céu. Alguém entediado. Detenho-me ante essa figura. Estou olhando fixo em seus
olhos, a desafio como desafio o mar. Sou beijado, sinto o gosto do cigarro que
presenteei em seus lábios.
É manhã, volto para minha casa
com tudo aquilo que precisava para minha paz: Dinheiro, promessas e um coração
deixado na areia da praia.
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Deixa eu bagunçar você
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