Foi assim:
Primeiro eu achava que não precisava me preocupar com essa vida porque a que viria depois seria infinitamente melhor.
O importante era me manter respirando e não vacilar muito com os outros, tava tudo certo. Amar o próximo como a ti mesmo. Aham, sei.
Daí que a guria me deu um toco na igreja.
(Ok. Visando não perder a verossimilhança, devo confessar que nem houve toco. Nem tentei, mas ver a guria pra quem lançava olhares que eu acreditava serem de desejo desfilar com o cara mais tosco de todos arrebentou minhas esperanças. Demorei a descobrir que amor tinha muito mais a ver com sexo do que com gentilezas, e sim, ele tinha pinta de quem sabia foder alguém).
Depois, eu acreditei que era possível comprar ou forjar uma vida pra si. “Temos todas as opções, pode escolher, o cliente é quem manda.”
“Temos o rebelde sem causa que mora com os pais e sempre bebe até vomitar; o nerd que vive pelos cantos, não come ninguém e se julga incompreendido; o cara inteligente e boa praça que namora a mais bonita da turma; o machão encrenqueiro que come todas, conta pros amigos e chora à noite porque sabe que é sozinho... A lista não acaba”.
Não topei nenhuma dessas, ainda que tenha tentado algumas.
Nessa época coisas estranhas aconteceram. E nem falo da voz que muda e dos hormônios que surtam. Andei pra lá e pra cá, descobri o poder que se pode ter sobre alguém, o valor da negação pura das afirmações vazias (“sim, claro, você tem razão”), Velvet Underground, Sade, Coca, Baudelaire, Drummond, maconha, O curto verão da anarquia... Vivi minha década de 60 particular, anos incríveis, ateu graças a deus.
E então o vazio. “Viver por algo maior”, dizia pra mim mesmo. Adolescentes são mesmo seres dignos de pena.
Aí que resolvi colonizar minha vida com a política do cotidiano. Socialismo, anarquismo, existencialismo, desconstrutivismo, feminismo... Viver era transformar. E não bastava comer merda, ainda tinha que convencer os outros de que a merda era boa. Missão impossível pra quem prefere enfiar o dedo na tomada a subir em qualquer espécie de palanque.
Tudo ótimo. O idealismo realmente disfarça bem a mediocridade. Farras, orgias, super estimativa da própria importância, loucura. Por sorte, e eu sempre contei com a sorte, fiz amigos. E me apaixonei. De verdade. Nada a ver com a história da igreja.
E aí foi pisar fundo no acelerador. Rumo a um viaduto inacabado. E não tirar o pé ao ver a altura da qual despencaria. E isso justamente quando achei que estava dando um jeito na minha vida. Uma pessoa adulta, saca? Foi foda. Adrenalina e medo são viciantes. Viver no limite, andar no fio da navalha, o amor é um cão dos diabos, não é Velho Safado? Conheci tudo isso. Não me prostrava de joelhos desde a época da igreja. E cansei de rastejar. Caminhar pelo lado mais louco. E viver era isso. Desejar, sofrer, frustrar-se. Sentir. Sentir. E parar de sentir. Sem aviso prévio. O império dos sentidos cobra seu preço. A paixão vicia mais que a cocaína, e o veneno demora muito mais pra sair de seu corpo. Dizem que depois de algumas semanas, é como se você nunca tivesse cheirado. Amar não. Arrumar um grande amor pra substituir outro não encerra o vício, só muda a procedência e a qualidade da droga. Eis o truque do jogo. E descobrem-se outros vícios. Viver torna-se um vício. Minha mais nova ideologia, o vício, a certeza de dar para o mal. O resto é resíduo. Distrações enquanto a madrugada não chega ou pra ela passar mais rápido.
E o acaso. Minha religião. Não consegui nada que não fosse por ele, então nem ouse atacá-lo. Somos governados por um tirano endiabrado, que brinca com nossos pequenos dramas. Não há sentido. Uma grande piada. Elvis morreu sentado na privada, então não me venha chamá-lo de rei.
Beijarei teus lábios e vou te morder entre as pernas, não espere muito de mim além disso. Não posso oferecer muito além de minha confusão, minha história sem nexo, minha sina maldita, minha ausência de fé, minha vida imaginária tão real, meus caminhos, minhas veredas, veredas sinuosas, veredas blues. O resto é sombra. Mais rápido amigo, o mundo está atrás de você. É hora de testar a vida, descobrir enfim se ela é sólida, líquida ou etérea.